Carnaval perde o deboche da marchinha

Grupos promovem discussão e retiram músicas do repertório; compositor defende descontração

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Por Edison Veiga , Juliana Diógenes e Roberta Pennafort
Atualização:

“Quando a mulher é boa/ é boa, muito boa/ o homem deve ter cuidado e capricho/ também quando ela é feia/ é feia, muito feia/ pode matar que é bicho”.

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Em 1949, Francisco Alves cantava a marchinha carnavalesca composta em parceria com Haroldo Lobo e Milton de Oliveira e o cordão ia atrás, sem que ninguém fosse tachado de misógino nem violento. Passados quase 70 carnavais, letras que carregam preconceitos contra mulheres, gays e negros vêm suscitando reflexões em foliões e pesquisadores, que levantam a questão: o politicamente correto tira a espontaneidade e a irreverência da festa?

Não pode chamar de mulata. Tripudiar da cabeleira do Zezé também não. Mulheres em papéis inferiores, objetificadas? Não! Alguns blocos de carnaval paulistanos aderem ao politicamente correto e prometem vetar marchinhas tradicionais, adaptar algumas letras ou mesmo executar músicas apenas na versão instrumental.

O bloco Bastardo, grupo de rua que toca em Pinheiros, trocou a letra de 'Cabeleira do Zezé'. Foto: Daniel Teixeira

É o caso do Bloco Bastardo, agremiação fundada em 2013 e que circula por Pinheiros com um repertório que mescla marchinhas tradicionais e outras menos conhecidas. “Acho importante promovermos uma discussão. Algumas marchinhas são de outros tempos e uma leitura contemporânea evoca temas de racismo e misoginia, por exemplo”, comenta Pedro Gonçalves, um dos fundadores do bloco.

“O núcleo da música do bloco já está estudando esta questão, no sentido de evitar marchinhas antigas que reproduziam costumes da época, para que hoje as pessoas não cantem no automático sem questionar isso”, diz Pablo de Sousa, também fundador do Bloco.

Há dois anos, o bloco cortou de seu repertório a clássica O Teu Cabelo Não Nega, composta por Lamartine Babo em 1932. “Neste caso específico, a leitura que eu faço é outra”, afirma Gonçalves. “Eu não concordo que seja racista: em minha interpretação, o eu-lírico quer a cor (negra), mas como a cor não pega, ele se contenta com o amor. Mas tem muita gente que faz a leitura de a cor negra, na música, seria comparada a uma doença, mas como é uma doença que ‘não pega’, o eu-lírico quer o amor.”

Gonçalves conta, entretanto, que como muitos dos cantores e percussionistas do bloco simplesmente paravam de executar a canção quando era a vez desta, o grupo optou pelo veto. 

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No caso da Cabeleira do Zezé, composta por João Roberto Kelly, em 1964, a solução foi intermediária: substituiu-se o verso “corta o cabelo dele” por “solta o cabelo dele”.

“Em minha opinião, se há alguma música que realmente incomoda muito, vale a pena pensarmos em tirá-la completamente ou tocarmos só uma versão instrumental”, completa ele. “Minha intenção é promover um questionamento do repertório atual, e incluir também marchinhas depois de uma pesquisa histórica em canções mais antigas que tenham sido engajadas, que tragam ideias libertárias.”

Leveza e alegria. Kelly, que também compôs "Maria Sapatão", em 1981 - outra marchinha acusada de incitar a homofobia -, diz que as alterações nas letras são algo inédito.

“Em mais de 50 anos de carreira, isso jamais me aconteceu. Esse repertório é tradicional do carnaval, nunca tive a intenção de ofender ninguém. O Zezé da ‘Cabeleira’ não parecia gay, ele parecia um Beatle, por ter cabelo comprido. São músicas que servem à leveza e à alegria do carnaval, não são para serem cantadas em setembro”, diz Kelly. “Fiz ‘Maria Sapatão’ sob encomenda porque o Chacrinha pediu. Fiz ‘Mulata iê iê iê’, que é um elogio rasgado à mulata. É ridículo criticarem a palavra, a mulata é a tal”.

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É injusto descontextualizar as marchinhas do momento histórico em que eles foram escritas e condenar seus autores, defende a historiadora Rosa Maria Araujo. Presidente do Museu da Imagem e do Som e autora, com o jornalista Sergio Cabral, de “Sassaricando – e o Rio inventou a marchinha”, musical de sucesso há 10 anos, ela se debruçou sobre cerca de 1400 músicas, para selecionar 100. 

O espetáculo é dividido em blocos temáticos, e um deles abarca justamente as marchinhas preconceituosas, como, por exemplo, “Vai ver que é” (Carvalhinho/Paulo Gracindo). A letra diz: “Se veste de baiana/ pra fingir que é mulher/ vai ver que é (...) Cuidado, minha gente/ com esse tipo de rapaz/ diz que é gente bem/ e ninguém sabe o que ele faz”.

“A sociedade evoluiu, graças aos movimentos sociais. As marchinhas são crônicas de sua época, a realidade do dia a dia, não significa necessariamente que os compositores eram racistas nem homofóbicos. Acho que essa discussão está vindo à tona agora não só porque os preconceitos são mais debatidos, mas também por conta do aumento do conservadorismo no País”, avalia Rosa Maria.

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Reflexo da sociedade. A jornalista Débora Thomé, fundadora do bloco Mulheres Rodadas, que, por ser formado por feministas toca músicas de compositoras e que ressaltem a liberdade feminina, acredita que as reflexões sobre as marchinhas não destoam do clima carnavalesco. O repertório do grupo, que desfila há três anos, não inclui “O teu cabelo não nega” e “Maria Sapatão”.

“Não se trata de censura, não somos polícia do carnaval. O compositor não é o culpado, a marchinha é só reflexo da sociedade. Mas se as integrantes do nosso bloco se sentem incomodadas com as letras, por que nós vamos cantar?”, pontua Débora, lembrando que habitualmente carnaval é permeado por política. “As marchinhas discutem a sociedade e as fantasias fazem críticas. Inclusive este ano provavelmente vamos ver fantasias criticando o politicamente correto”.

Mas outros blocos também tieveram a preocupação com as letras das marchinhas tradicionais. O tema foi debatido no bloco Quizomba, que nasceu no Rio de Janeiro e desfila no carnaval paulista desde 2011. Na edição deste ano, o grupo terá a estética tropicália e a temática de luta contra a misoginia e o machismo. 

Para o diretor e mestre de bateria, André Schmidt, é possível manter a veia lúdica da festa sem deixar de fazer uma reflexão. Em meio ao debate, Schmidt recebeu uma lista de 15 marchinhas que não deveria tocar, mas ponderou: "Menos, também não é para tanto. Cada um avalia da forma que quiser. O carnaval também é momento e espaço de conscientização, de parar para pensar, e isso é importante. Mas é um momento de brincadeira também. E logicamente nós do Quizomba não queremos brincar com racismo ou homofobia", explica.

'Politicamente correto'. Pensando nisso, Schmidt destaca que a letra de uma das mais famosas marchinhas de carnaval será revisada: em vez de "corta o cabelo dele", o Quizomba no carnaval deste ano vai cantar "não corta o cabelo dele". Uma canção já barrada é o axé Fricote, de Luiz Caldas. "Achamos bem preconceituosa. Já nos propuseram tocar essa música e vetamos essa possibilidade", diz Schmidt, sobre a música cujos versos iniciais diz “nega do cabelo duro/ que não gosta de pentear”.

“Antigamente, a gente não precisava se preocupar com isso. Fazia parte da festa e a própria banda escolhia o seu repertório. Hoje, o mundo nos exige mais atenção e sensibilidade”, reconhece Cleber Paradela, um dos organizadores do bloco Vem Ni Mim Que Eu Tô Com Tudo. “Por isso, iremos avaliar o repertório para não sermos coniventes com o que não é correto.” Ele não deu exemplos, entretanto.

Outro grupo que admite este cuidado com o repertório mas não quis dar exemplos de músicas vetadas é o Bloco do Ó. “Tenho achado o discurso reducionista. Porque escrachar um tema também é expor a questão, trazer a discussão. E não vou fazer do carnaval nenhum tipo de palanque”, diz uma das organizadoras, Stefania Gola. “Mas temos reuniões para definir o repertório. E o que eu garanto que não toca no Ó é música ruim. E o Bloco do Ó é tocado basicamente por mulheres, tem uma presença negra fortíssima e é um espaço aberto para todo tipo de diversidade.”

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Maldade. O debate também tem vez no bloco Coração do Tucuruvi. “Estamos vivendo um momento complicado, em que muita coisa ofende alguém”, preocupa-se o fundador do grupo, Rodney Magalhães de Barros. “Acredito que quando foram criadas, essas marchinhas não tinham maldade. Mas hoje podem ter mesmo uma interpretação ruim. A maldade do ser humano tem transformado em crime as coisa mais imples.” Ele diz que avalia ainda quais músicas podem ser tiradas do repertório. “Porque, infelizmente, hoje há quem use todo tipo de situação para prejudicar o outro.”

Presidente da Abasp, a associação dos blocos de carnaval de São Paulo, o carnavalesco Candido José de Souza Neto, o Candinho, é contra essa onda politicamente correta. “Quem proíbe esta ou aquela música não conhece absolutamente nada do sentido do carnaval popular”, afirma. “A brincadeira do carnaval é justamente satirizar, criticar, isso faz parte da brincadeira.”

Candinho ressalta, entretanto, que a instituição que ele preside não emitiu e nem pretende emitir nenhuma orientação aos blocos associados. “Cada um faz o que quer, este é o espírito do carnaval”, diz. “Somos a única entidade completamente democrática.”

O bloco mais antigo de São Paulo, o Esfarrapado, nasceu em 1947 com o objetivo de preservar as tradicionais marchinhas. O atual presidente, Maurizio Bianchi, sequer cogita fazer alterações, principalmente para não desagradar o público. "É um atrativo. Remonta ao verdadeiro carnaval de rua. Cabeleira do Zezé, Nega Maluca, Mamãe eu quero... Todas essas músicas marcaram época. Nunca tivemos crítica negativa. As pessoas nem pedem para tocar outras músicas. E a cada ano aumenta a participação de crianças e famílias", diz. 

Democracia. “Eu posso ter minhas convicções pessoais, mas no período do carnaval não dá para manter esses controles, não”, acredita o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor de Etnomusicologia e Cultura Popular do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que desenvolve pesquisas sobre o carnaval há mais de 30 anos. “Os movimentos que defendem as minorias têm todo o direito de reclamar, de protestar, mas o carnaval é um grande caldeirão. Cada grupo, cada localidade vai pautar e vai aderir a uma determinada linha.”

Ikeda lembra também o contexto histórico da época da criação de cada marchinha. “É como as escolas infantis que proíbem a criança de cantar ‘Atirei o Pau no Gato’”, compara. “Na época em que foram compostas, aquelas músicas preconceituosas refletiam o pensamento dominante vigente. Não dá para dizer se é correto ou incorreto cantá-las hoje. Mas só o fato de promover uma discussão já é válido.”