Como a morte do miliciano Ecko reconfigurou o crime no Rio e fez disparar a corrida por poder

Processo de sucessão desencadeou uma verdadeira guerra entre líderes de facções; 35 ônibus foram incendiados na segunda-feira

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Por Marcio Dolzan

A tarde de verdadeiro terror na zona oeste do Rio, quando 35 ônibus foram incendiados na segunda-feira, 23, após um miliciano ser morto em ação da Polícia Civil, não surpreendeu estudiosos da violência no Estado. A reação, segundo eles, era esperada. Ao mesmo tempo em que escancara o poder dos grupos criminosos, a ação também reforça o que as estatísticas já vinham demonstrando: um aumento da violência, sobretudo armada, na zona oeste do Rio.

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A situação se deteriorou ainda mais nos últimos anos, a partir da morte de Wellington da Silva Braga, o Ecko. Líder da maior milícia do Rio, ele foi morto em 2021 em uma ação da Polícia Civil, e o processo de sucessão no grupo desencadeou uma verdadeira guerra entre Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, e Danilo Dias Lima, o Tandera.

“Houve um racha na milícia, com Tandera e Zinho (seu irmão) disputando o controle das áreas que eram de domínio de Ecko. Esse conflito entre milicianos é grande e afeta a vida de milhões de pessoas há meses”, ressalta Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado.

“A Liga da Justiça, milícia formada inicialmente por policiais expulsos e aposentados, se transformou com a liderança de Carlinhos Três Pontes, que foi traficante e nunca foi policial. Ele começou a chamar traficantes para compor a milícia, e expandiu a relação com o tráfico”, explica Cecília.

Miliciano mais procurado do Rio, Ecko foi morto em uma operação policial em 2021 Foto: Ministério da Justiça/Divulgação
  • Carlinhos Três Pontes foi morto em uma operação policial em 2017. Ecko, que era irmão de Carlinhos, assumiu a chefia do grupo e comandou o período de maior expansão da milícia, até ser morto em 2021.

O Ecko era o governante local. A sucessão dele não se faz em cartório, o cartório é a vida de quem disputa o poder.

Jacqueline Muniz, professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF)

A antropóloga Jacqueline Muniz, professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que a sucessão na liderança de grupos armados “não se faz em cartório”, mas sim com mais violência. “O Ecko era o governante local. A sucessão dele não se faz em cartório, o cartório é a vida de quem disputa o poder.”

  • As disputas se refletem nos números. Segundo o Fogo Cruzado, o número de tiroteios aumentou 55% na zona oeste este ano em relação a 2022. Já o de chacinas saltou de 4 para 14, o que representa um aumento de 250%. Os dados se referem a números compilados até essa segunda, 23.

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Milicianos queimaram 35 ônibus na zona oeste do Rio depois da morte de um líder da facção criminosa pela polícia Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na avaliação de Jacqueline Muniz, a ação orquestrada pela milícia na segunda-feira à tarde não surpreendeu porque, segundo ela, “é bem semelhante ao ‘salve’ que fazem em São Paulo”. Além disso, o ataque aos coletivos e a um trem da Supervia atingem diretamente um serviço essencial à população, o que amplifica um modo de agir comum das milícias.

“Esse grupos exploram serviços e bens essenciais à população, como luz, água e serviços de gás. Alguns postes da zona oeste são pintados de forma a identificar que ‘pertencem’ às milícias”, lembra Jacqueline. “E o maior medo das pessoas é ficar presa em tiroteios, não conseguindo sair para trabalhar ou voltar para casa. Ao queimar ônibus, isso amplifica para toda a cidade. Eu tive alunos que me pediram para fazer aula remota por causa disso.”

Ataque aos ônibus fez com que empresas recolhessem os demais coletivos e deixou milhares de pessoas sem conseguir voltar para casa.  Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Áreas controladas pela milícia cresceram quase cinco vezes em 16 anos

Um estudo realizado pelo Instituto Fogo Cruzado em parceria com Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF mostra que as áreas dominadas por grupos milicianos aumentaram 387,3% entre 2006 e 2021. Ao todo, segundo o mapeamento, 10% de toda a área territorial que compõe a região metropolitana do Rio tem atuação deles.

“O Mapa dos Grupos Armados, produzido pelo Fogo Cruzado e pelo Geni da UFF, mostra que o único momento em que o poder da milícia não avançou, mas reduziu, foi durante a CPI das Milícias. Por quê? Porque a sociedade se mobilizou para enfrentá-las. Mas friso: durante”, ressalta Cecília Olliveira.

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“Em 2008, a CPI das milícias identificou centenas de pessoas, muitas foram presas, o problema foi exposto. E veja bem: na década seguinte esse problema enorme não foi contemplado nos planos de segurança, focado nas UPPs, especialmente em áreas turísticas comandadas pelo Comando Vermelho. Com toda aquela exposição, as milícias saíram dos holofotes, mas cresceram muito nas sombras. Quando se viu, era 2018 e Marielle Franco estava sendo executada no centro da cidade. Hoje em dia todo mundo sabe ao menos o nome de um miliciano”, diz a diretora.

O único momento em que o poder da milícia não avançou, mas reduziu, foi durante a CPI das Milícias. Por quê? Porque a sociedade se mobilizou para enfrentá-las. Mas friso: durante.

Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado

“A milícia se diversificou, diversificou seus negócios. De fato este grupo que é ligado ao Ecko estabeleceu alianças com o Comando Vermelho e abriu conversas com o Terceiro Comando Puro. Então, acontece algo interessante nisso: há uma escalada de assassinatos desses líderes e parece que temos uma ação antimilícia em curso. Só que esta é uma lógica muito parecida com as ações antitráfico que vemos. Basicamente a perseguição de líderes. Só que isso não afeta a estrutura”, pondera Cecília.

Em entrevistas concedidas na noite de segunda-feira e na manhã desta terça, o governador Cláudio Castro (PL) afirmou que a reação dos milicianos demonstra “desespero” dos grupos criminosos com a política de segurança pública implantada, cujo foco seria a prisão das lideranças.

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Questionado sobre as ações que vêm sendo tomadas para combater o avanço das milícias, o governo do Estado respondeu em nota que o governo Castro investiu R$1,5 bilhão em segurança pública, incluindo efetivo, infraestrutura e tecnologia para as forças de segurança.

“Só este ano, foram retiradas 4.980 armas de fogo das mãos de criminosos, 487 delas, fuzis. Em nove meses, o Estado apreendeu o maior número de fuzis dos últimos 16 anos”. O texto diz ainda que “as ações para asfixiar o crime organizado já resultaram em prejuízos de mais de R$ 2,5 bilhões para as milícias” e que “mais de 1.500 milicianos foram presos”. Ainda segundo o governo estadual, “só neste ano, a polícia do Rio de Janeiro prendeu em flagrante mais de 28 mil pessoas”.

Mas, para Jacqueline Muniz, o discurso do governo se assemelha ao de tantos outros e não resolve o problema. “Eu chamo de ‘política dos três S’. Primeiro, se produz sustos na população, como o caso dos ônibus. Aí você têm os surtos de autoridade, que é esse discurso de enfrentamento. E acaba produzindo um soluço operacional, porque geram operações que têm resultado apenas pontual”, considera.

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