GENEBRA – Relatores da ONU cobram explicações para a morte de quase 30 ativistas de direitos humanos no Brasil em 2016, alertando para o que chamaram de uma “crescente criminalização de movimentos sociais”. Até fevereiro deste ano, três meses depois do prazo estipulado pela ONU, o governo brasileiro havia dado respostas sobre apenas cinco dos casos. Mas, em quatro deles, as autoridades apenas indicaram que não sabiam de qualquer ameaça contra essas vítimas antes de suas mortes.
Em documentos confidenciais enviados pelos relatores ao governo brasileiro ainda em setembro 2016, os relatores descrevem com detalhes a situação de 29 pessoas que, por conta de suas atividades de defesa de direitos humanos, foram assassinados ou ameaçados.
O documento foi assinado por seis relatores diferentes da ONU, incluindo Agnes Callamard, que se ocupa de execuções sumárias, David Kaye, de liberdade expressão, Michel Forst, relator da ONU sobre a situação de defensores de direitos humanos, e Victoria Lucia Tauli-Corpuz, dedicada à temática indígena. “Expressamos nossa preocupação com o que aparenta ser uma crescente criminalização de movimentos sociais e aumentou de ameaças e violência contra defensores de direitos humanos no Brasil”, indicaram.
“Estamos expressando nossa grave preocupação sobre as supostas mortes e tentativas de mortes, incluindo ameaças, contra membros do MST, lideres indígenas, assim como outros ativistas, como defensores de causas de mulheres, direitos de acesso à terra ou por meio do exercício da liberdade de expressão”, alertaram os relatores da ONU.De acordo com o documento, o governo precisava dar respostas sobre o impacto de suas políticas para a reforma agrária, proteção ambiental, demarcação de terras e até acesso à saúde.
Um dos pontos principais ainda se referia à situação de indígenas. Os relatores se disseram “preocupados sobre o fato de que as autoridades do Estado estão fracassando em proteger os direitos dos povos indígenas”. “Sérias preocupações também estão sendo levantadas sobre a falta de investigações adequadas sobre essas mortes, impedido acesso à Justiça para vítimas e seus familiares, e impede responsabilização de autores”, completaram.
Um dos casos mencionados pelos relatores foi o de Enilson Ribeiro dos Santos, coordenador Liga dos Camponeses Pobres, e de Valdiro Chagas de Moura. No dia 23 de janeiro de 2016, eles foram mortos em Rondônia por homens não identificados, depois de anos lutando por acesso à terra e por denunciar ameaças contra camponeses. “A polícia de Jaru, responsável pela investigação, supostamente não tomou as medidas para encontrar os responsáveis pelas mortes”, indicou o documento.
A carta ainda menciona Francisca das Chagas Silva, organizadora de um quilombo e que, em 2 de fevereiro de 2016, foi encontrada assassinada na cidade de Miranda, no Maranhão. No mesmo Estado, no dia 13 de abril de 2016, o líder comunitário José Conceição Pereira foi morto na periferia de São Luís.
Atraso. Os peritos da ONU cobraram do governo “detalhes” sobre as investigações sobre essas 29 mortes e ameaças. “Se nenhuma investigação foi conduzida, explique o motivo”, pediram.
Os relatores da ONU deram até o final de novembro de 2016 para que o governo apresentasse seus argumentos. Mas uma carta enviada pelo Itamaraty em fevereiro de 2017 foi a primeira resposta recebida pelos peritos. Nela, o governo apenas explicou sua posição sobre cinco dos 29 casos mencionados pelos relatores, sem qualquer referência ao estágio das investigações. Em nenhum dos cinco casos respondidos o governo revelou se alguém havia sido preso.
Um deles é o do líder Guarani-Kaiowá, Clodieldo de Souza. O governo indicou que o sistema de proteção de defensores de direitos humanos não recebeu qualquer tipo de pedido sobre sua situação “antes de sua morte, o que impediu a adoção de medidas específicas para sua proteção”. Ele foi assassinado supostamente a mando de fazendeiros, em 2016, em Caarapó, na região de Dourados (MS).
Para o líder indígena Elson Canteiro Gomes, as forças de segurança do governo tinham conhecimento de que seu parente corria risco.
Segundo ele, dois dias antes do assassinato, quando cerca de 300 índios iniciaram a ocupação da fazenda, as polícias federal e militar monitoravam a área e sabiam que os fazendeiros estavam se organizando para retomar as terras.
Clodieldo era agente de saúde indígena e considerado uma liderança importante, por isso se tornou um alvo. “Eles chegaram em muitos carros e caminonhetes, fizeram um cerco e foram atirando. Clodieldo tomou o primeiro tiro, correu na direção da aldeia e tomou outro”, relatou. Só depois do conflito, segundo ele, a segurança aos índios foi reforçada com a chegada da Força Nacional. Gomes não tem informações sobre a investigação. “Nós somos parentes dele e não estamos vendo acontecer justiça.”
A fazenda ocupada está em processo de demarcação pelo governo federal para criação de terra indígena. A Polícia Civil de Caarapó informou que o caso, por envolver população indígena, é investigado pela Polícia Federal. A PF informou que já concluiu o inquérito e encaminhou para o Ministério Público Federal em Dourados. A reportagem não conseguiu contato com o procurador que atua no caso.
O governo também afirmou que desconhecia qualquer ameaça que existisse contra Nilce Magalhães, líder dos pescadores e ativista do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) assassinada em Porto Velho (RO). O caso de Nicinha, como era conhecida, é dado como esclarecido pela polícia. O autor confesso do crime, Edione Pessoa da Silva, foi julgado e condenado 15 anos e 6 meses de prisão em dezembro do ano passado. O MAB, no entanto, acredita que há mandantes e outras pessoas envolvidas no crime. “Há várias lacunas que não foram respondidas e um segundo inquérito, aberto para verificar se houve mandantes e outros participantes, está parado”, disse Francisco Kelvin Nobre da Silva, coordenador estadual do MAB em Rondônia.
O corpo de Nicinha só foi encontrado em junho de 2016, no lago da usina de Jirau, com as mãos e os pés amarrados com uma corda, presa em pedras, cinco meses após o desaparecimento dela. Além de Edione, a polícia prendeu Leonardo Batista da Silva como cúmplice, mas ele acabou absolvido do assassinato. “O inquérito foi falho, não houve perícia, o exame de DNA demorou a ficar pronto. O companheiro e os três filhos dela estão com medo, pois acreditam que há envolvidos soltos.”
Segundo ele, Nicinha não pediu proteção porque não acreditava que pudesse ser protegida pela polícia. “Mas a atuação dela incomodava, principalmente porque conseguiu que a concessionária da hidrelétrica de Jirau pagasse auxílio-manutenção a um número maior de pescadores.” Ela também lutou pela realocação dos pescadores afetados pelo enchimento do lago. “Nesse contexto, ainda temos, hoje, outras lideranças ameaçadas”, afirmou Silva.
O mesmo argumento- ausência de informação - foi apresentado pelo governo sobre as mortes dos indígenas Genésio Guajajara e Isaías Guajajara, no Maranhão, em 2016.
Na carta do governo, de 21 de fevereiro de 2017, as autoridades do Itamaraty ainda “reiteram que estão ativamente engajados em obter” as informações sobre os restantes dos casos mencionados. De acordo com a ONU, porém, esses demais casos jamais foram explicados.