Como PCC, Comando Vermelho e mais facções comandam sobe-desce de assassinatos no Brasil

País viu nova queda no indicador de assassinatos em 2022. Pesquisadores apontam influência da redução da tensão entre grandes grupos criminosos organizados, além de facções locais

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Foto do author Marco Antônio Carvalho
Foto do author Ítalo Lo Re
Por Marco Antônio Carvalho e Ítalo Lo Re
Atualização:

Facções criminosas, e não políticas públicas, têm sido a principal causa da variação das taxas de homicídio no Brasil na última década, segundo apontam estudos e especialistas que analisam os dados de violência no País. A conclusão põe esses grupos organizados como protagonistas do sobe-desce de assassinatos que as cidades brasileiras registram nos últimos anos.

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O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou neste mês os dados mais recentes de violência, mostrando queda de homicídios no Brasil em 2022, a quarta em cinco anos. Mais do que o efeito de algum projeto ou medida das polícias e Estados, o que essas análises apontam é o peso preponderante do atual equilíbrio na tensão nacional entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), e de facções regionais.

Um grupo de sete pesquisadores se debruçou sobre o tema e publicou em 2022 um estudo analisando a variação de homicídios em quatro capitais (São Paulo, São Luís, Maceió e Porto Alegre) e a relação com as dinâmicas das facções nesses territórios. O trabalho foi publicado na Dilemas, revista de estudos de conflito e controle social, ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo os escrevem os especialistas, “a articulação entre regimes de poder coexistentes nas periferias, materializados nas disputas pelo controle de mercados ilegais e pelo ordenamento dos conflitos cotidianos entre facções é, de longe, a principal causa das variações notáveis nas taxas de homicídio no Brasil nas últimas décadas”.

Gabriel Feltran, hoje diretor de pesquisa do CNRS (centro de pesquisa ligado ao governo francês) e um dos autores do artigo, disse ao Estadão que “a expansão do CV-PCC em aliança até 2016, a guerra entre os dois grupos pelo País todo em 2017, e a acomodação desse conflito em seguida, na maioria dos territórios, tem muito mais influência nas taxas agregadas do que qualquer política pública”, diz. Entre os autores do trabalho, estão pesquisadores de instituições como as universidades federais de São Carlos, Rio Grande do Sul, Alagoas, Maranhão e Pernambuco.

Detentos se rebelaram no presídio de Alcaçuz, na Grande Natal, e se envolveram em combate que deixou dezenas de mortos Foto: Marco Antônio Carvalho/Estadão - 19/1/2017

Gestores citam com frequência políticas de controle e investigações de homicídio, prevenção de violência voltada aos jovens e repasse de verba e equipamentos às polícias como exemplos de políticas públicas que poderiam ter influência decisiva na segurança. As estratégias são importantes, mas a redução de indicadores, na visão desses e de várias correntes de especialistas em segurança, está mais ligada à estabilização autônoma do conflito entre facções do que à atuação estatal.

A guerra citada pelo professor ficou evidenciada no primeiro dia de 2017, quando a facção Família do Norte (FDN) executou 56 detentos ligados ao PCC em um presídio de Manaus. Associada na época ao Comando Vermelho, a FDN apertou com mais intensidade o conflito nacional que já se desenhava.

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Naquele mesmo mês, rebeliões em cadeias de Boa Vista e Natal, que somaram mais dezenas de vítimas assassinadas, voltariam a evidenciar a disputa. O ano de 2017 terminaria com o recorde de 64 mil homicídios no País. Em 2023, com o equilíbrio na disputa, o patamar ficou em 47 mil assassinatos, 17 mil a menos do que o visto no auge da guerra.

“É óbvio que variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que bato na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais”, disse ao Estadão o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso, que não participou do estudo citado.

Porto Alegre teve guerra entre Bala na Cara e Antibala

Gabriel Feltran, hoje professor da Sciences Po (França), explica que o estudo olha para o perfil das vítimas de 2000 a 2020 e traça sinopses dos conflitos armados em quatro cidades (São Paulo, Porto Alegre, Maceió e São Luís) a partir de pesquisas qualitativas. “Quando as linhas do tempo se sobrepõem, mostra-se que nossa hipótese (do peso das facções) tem boas chances de ser verdadeira”, diz.

O estudo exemplifica o caso de Porto Alegre, onde o conflito entre o grupo Bala na Cara (BNC) e os Antibala começou a se acentuar em 2015, quando o total de homicídios da capital gaúcha chegou a cerca de 700. No ano seguinte, “os já veteranos BNC digladiaram-se com os recém-criados Antibala e, no ano mais brutal da história de Porto Alegre, o total de homicídios chegou a 903″. Com o fim do confronto, as taxas viriam a despencar em 2018.

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Depois de um tempo, a guerra ficava cara para os grupos criminosos. “Antes, o grupo que liderou os Antibala era desconhecido cidade afora, mas adquiriu duas galerias na maior prisão do Estado em 2017, fortalecendo consideravelmente sua capacidade de participar dos mercados ilegais. Dali em diante, a dinâmica das vendetas mais atrapalhavam do que contribuíam para suas novas pretensões e capacidades”, dizem os pesquisadores no artigo.

“Os BNC, por sua vez, estavam mais interessados em dirigir seus esforços para o interior do Estado”, acrescentaram.

Feltran explica que as taxas de homicídios variam muito pelo Brasil, no tempo e no espaço. “Mas o perfil preferencial da vítima, não. É assassinado no Brasil, sobretudo, o operador baixo dos mercados ilegais (drogas, veículos roubados, contrabando, armas etc.)”, afirma.

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É assassinado no Brasil, sobretudo, o operador baixo dos mercados ilegais (drogas ilegais, veículos roubados, contrabando, armas etc.).

Gabriel Feltran, pesquisador

No Brasil, ressalta o pesquisador, esses operadores são jovens negros, pobres e com escolaridade defasada. “Em outros países da América Latina, grupos indígenas pauperizados, (são) recrutados nas redes criminais.”

À reportagem, a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul reconheceu que a maioria das mortes violentas no Estado “está associada ao tráfico de drogas e a disputa entre grupos criminosos”.

Mas atribui a queda de indicadores a ações da polícia. “Devido ao reforço das ações de segurança e aumento dos investimentos no combate à criminalidade, o Rio Grande do Sul vem reduzindo, mês a mês, os índices, como verificado no 1º semestre de 2023. Em maio, por exemplo, o RS registrou o menor número de homicídios no Estado dos últimos 13 anos”, aponta.

Questionada sobre o papel das facções na dinâmica, a pasta acrescenta que os resultados “refletem o planejamento tático, operacional e de inteligência adotados” pela secretaria, além do aumento de efetivo, investimentos e qualificação dos policiais.

PCC reduziu os homicídios em São Paulo?

O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança divulgado nesta semana traz novamente o Estado de São Paulo com a menor taxa de homicídios do País: são 8,4 casos a cada 100 mil habitantes. A média nacional ficou em 23,4. A curva descendente do crime nas cidades paulistas impressiona ao deixar no passado a taxa que superava os 60 casos para cada 100 mil pessoas. Uma dúvida frequente relativa ao período diz respeito à influência do PCC na redução drástica.

A resposta, dizem especialistas, tem elo com a hegemonia que a facção criada em Taubaté em 1993 obteria ao longo dos anos 2000. “A institucionalização pelo PCC de políticas faccionais de esclarecimento de homicídios, mediação de conflitos por uma terceira parte, reparação da vítima e responsabilização dos agressores, com controle estrito do armamento, fez com que parcelas excluídas do sistema de justiça formal sentissem que efetivamente havia uma política de segurança nas quebradas”, descrevem os pesquisadores.

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O que é descrito acima é o poder de influência do PCC sobre o Estado nas periferias paulistas. Mediando disputas locais, desde brigas de vizinhos a conflitos armados, e sendo responsável pela aplicação de uma sentença ágil e “justa” na visão dos envolvidos, a facção impôs seu poder de controle. São conhecidos da polícia os “Tribunais do Crime”, coordenado por membros da facção e que resultam em punições e até em sentenças de morte por vezes ao largo do controle, combate e responsabilização estatal.

“Escrevo sobre esse tema desde 2003. Em nenhum momento disse que a hegemonia do PCC explicava sozinha a queda de homicídios em São Paulo”, disse Feltran. “Sempre afirmei, no entanto, que ela era a causa fundamental dessa redução. Demonstrei os mecanismos pelas quais ela se dava e os problemas das demais hipóteses estudadas. Seguimos assim por vinte anos e nossa interpretação é bastante sólida.”

O Estado historicamente destacou o papel da implementação e fortalecimento do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, na redução dos indicadores. Questionada pela reportagem sobre o tema, a Secretaria da Segurança paulista destacou “ações preventivas e ostensivas para combater a criminalidade e tentar reverter os índices de 2022″, quando o indicador de homicídios voltou a aumentar, ainda que se mantendo em um patamar bem menos expressivo do que no início dos anos 2000.

Mas há diferenças entre regiões. Pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Fabio Candotti diz que, sobretudo no Norte – que tem sido marcado pela sobreposição de crimes ambientes com o narcotráfico –, é preciso observar a atuação das facções junto a outras dinâmicas. “Não é possível pensar a regulação de mercados ilegais de drogas e as mortes sem pensar a atuação policial e de milícias”, afirma.

Candotti afirma que associar o alto índice de assassinatos na Amazônia Legal só a conflitos entre facções reduz a complexidade da questão.A hipótese principal é que facções como o PCC e o Comando Vermelho não necessariamente comandam todos os “grandes mercados ilegais” da região, mas compartilham rotas com outros criminosos e, em alguns casos, atuam como uma espécie de “escolta armada” de grupos que praticam crimes como garimpo ilegal.

Ceará convive com altas e quedas da taxa de mortes

O Ceará observou de perto, como quase nenhum Estado, a variação de assassinatos nos últimos dez anos. Em 2016, registrou 3,5 mil homicídios. Em 2017, o dado subiu para 5,3 mil, acompanhando o recorde nacional. No ano seguinte, cairia para 4,7 mil. Em 2019, viria uma baixa mais significativa para 2,3 mil. Mas em 2020 o patamar retornou para 4,1 mil.

Luiz Fábio Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica a mudança no perfil da violência vista no Estado. “Se antes havia dois grupos armados brigando dentro de um bairro, agora há a unificação desses grupos no interior de um grupo que trabalha em uma escala maior, que é a facção, e todos esses grupos unidos na forma de facção operando uma série de conflitos armados que estão interligados”, detalhou.

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A partir dali, as cidades cearenses não deixariam de ver um confronto com cada vez mais vítimas. “Um conflito dentro de um bairro passou a ser um conflito entre facções rivais e esse conflito dentro do bairro está conectado ao que está acontecendo em toda a cidade e em todo o Estado. O que a gente observou em 2016, 17 e 18, foi uma intensificação do número de homicídios. E isso obviamente nos leva a acreditar que isso tem a ver com a dinâmica criminal que operava no local”, disse.

Nos anos seguintes, vê-se queda, “até se fala na superação do fenômeno da facção, o governo do Estado desenvolve uma série de ações, tenta controlar as prisões e consequentemente as facções”, segundo Paiva.

“No entanto, o que se observa em 2023? As facções continuam sendo uma realidade, há brigas, há disputas, há novas configurações com a massa carcerária, uma fragmentação das próprias facções, mas a gente ainda vê esses elementos, territórios controlados, grupos alinhados”, apontou.

O que a gente observa hoje, em 2023? As facções continuam sendo uma realidade, há brigas, há disputas, há novas configurações com a massa carcerária.

Luiz Fábio Paiva, professor e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Paiva vê as facções não apenas como um fenômeno do crime, mas social. “Conseguiram espaço, criar um método, maneira de fazer o crime que independentemente da prisão de pessoas que ocupam posição de liderança, esses grupos continuam existindo. A maneira de fazer da facção continua sendo uma referência para quem está envolvido na prática criminal e isso também tem efeitos sociais”, acrescentou.

Bruno Paes Manso aponta o efeito de uma profissionalização sobre as atividades da facção que tem resultado em menos conflitos. Para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos, diz ele. “Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos.”

Questionada sobre o assunto, a Secretaria de Segurança do Ceará destacou uma série de ações governamentais no combate ao crime. “Para chegar a esses resultados de reduções consecutivas (de indicadores de mortes violentas intencionais), as forças de segurança realizam, de forma permanente, operações de combate à criminalidade em bairros de Fortaleza, na região metropolitana e em todo o Estado.”

Soluções passam por investigação e mudança na ‘fábrica de criminosos’

Para Feltran, para resolver o problema é preciso aprender com o que deu certo no Brasil e no exterior. Ele cita quatro medidas de redução de homicídios:

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  • regulação de mercados ilegais, como o que se fez com os desmanches em SP;
  • reversão da política carcerária atual, que faz das “cadeias fábricas de criminosos”, “caríssimas as cofres públicos”;
  • foco no crime violento, “que gera sensação de insegurança, e sobretudo na investigação de homicídios”;
  • controle democrático das atividades policiais, evitando autonomização e politização militarista das polícias.

“Infelizmente o fenômeno é tão grave e tão pouco compreendido que as políticas estatais tocam pouco em sua dinâmica”, destaca Feltran.

Leia a íntegra do estudo Variações nas taxas de homicídios no Brasil: Uma explicação centrada nos conflitos faccionais.

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