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Jornalismo de Reflexão

Daniel Munduruku: o mal estar na civilização

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Por Morris Kachani
Atualização:
 Foto: Estadão

"Do ponto de vista de saúde mental, nosso povo, o povo indígena, está mais maluco do que antes. É um povo meio desequilibrado". "O indígena já mostrou que é civilizado dentro da sua compreensão de civilização. Mas o discurso hegemônico é impor que existe só um tipo de civilização e que se a gente não for aquilo que querem que a gente seja, somos marginais, precisamos ser perseguidos. Nossa cultura não se baseia na mesma noção de tempo, riqueza e propriedade privada". "O grande problema hoje nas terras indígenas é a presença religiosa, seja católica ou evangélica. Os evangélicos são piores nesse sentido. O Brasil é um Estado laico, não deveria permitir presença missionária. Isso ofende a cultura e a crença indígena. Mas obviamente, caberia aos povos originários decidirem se querem ou não os missionários". "Com presença mais maciça de indígenas conversando nas universidades, vai surgindo uma epistemologia que tem a ver com uma nova compreensão do mundo e relação com o meio ambiente. Só que o indígena não filosofa. Quem vive no presente não tem tempo pra criar soluções 'psi' para a vida. Ele está ali no embate do dia a dia com a vida e vai construindo seu pensamento digamos com a própria prática". "Só existe o hoje. Não existe futuro. O indígena não cria sistema de pensamento. A gente aprendeu com a natureza como comer, dormir, construir nossa casa, enterrar nossos mortos, que a vida tem início, meio e fim, como a árvore e o passarinho. Já dizia o célebre pajé Jesus Cristo que a cada dia, basta sua preocupação. O que nos torna vaidosos é o que chamamos de cultura, porque ela nos coloca como seres superiores à natureza, de forma que a gente não consegue mais se relacionar com ela. E ela ri da gente".

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Nesta entrevista, o escritor e professor paraense Daniel Munduruku, pertencente ao povo indígena Munduruku, vencedor de dois prêmios Jabuti, autor de 56 obras classificadas como literatura infanto-juvenil e paradidáticos, fala sobre a saúde mental dos povos originários, passando por questões delicadas como epidemia de suicídio, alcoolismo e protagonismo das missões religiosas;Graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia e Mestrado e Doutorado em Educação pela USP, ele também estabelece uma conexão entre estes campos de estudo e os saberes ancestrais dos povos originários.

Assista à entrevista: https://youtu.be/gE9QTktkx8Y

"Não fazemos essa separação entre corpo, mente e espírito, tudo é uma coisa só e isso gera um equilíbrio na compreensão da nossa existência e do nosso jeito de lidar com o mundo e com a própria vida, com a finitude da vida. Então é um povo que não tem nenhuma angústia, a não ser tentar viver e viver bem o seu presente, o seu momento. Isso, na minha visão, tem muito a ver com a compreensão que nós temos sobre tempo, sobre a nossa permanência, a ideia de que nós estamos de passagem. O próprio nomadismo gera em nós uma certeza de que nós estamos de passagem nesse mundo e que uma hora isso acaba. Então a gente não fica se apegando muito na existência como um projeto para se tornar eterno"

"O ser humano acabou gerando muito mais coisas do que necessita. Essa farsa que foi sendo criada, de que nós precisamos ter coisas para ser felizes gerou um desequilíbrio". "O nosso povo nunca teve angústia mental por buscar coisas e por achar que a sua felicidade está ligada ao acúmulo de bens. Mas agora, vivemos em um tempo diferente, em contato permanente com essa tecnologia que nos obriga a ter bens, que nos obriga a viver em um contexto urbano e que, portanto, vai nos arrastando para essa loucura de modo que tem muito indígena que já se pensa "empresário", já se pensa "empreendedor", já se pensa dentro dessa sociedade. Essa opressão mental tem gerado inquietudes, doenças e incômodos dessas populações, afetando a psicologia, o inconsciente dessas populações".

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"Os povos indígenas são muito movidos por um sentido de pertencimento, e esse pertencimento tem muito a ver com a cultura de cada povo, de como cada povo interpreta a sua presença no mundo e como essa presença é possível de ser vivida a partir da continuidade daquilo que se tem. Então muitos jovens sendo criados dentro de uma cultura específica indígena ancestral, quando eles se deparam com as outras culturas, às vezes perdem essa característica simbólica vinda da cultura em que cresceram. Muitos deles têm essa dificuldade de lidar com essas questões e começam a pensar em suicídio. Lembrando que isso é uma reflexão minha, porque tem muitas outras questões envolvidas. Suicídio é um ato extremo mas também uma solução, dependendo de como cada povo entende seu lugar no mundo". "Não foram os indígenas que foram para as cidades, foram as cidades que vieram para cima dos indígenas. E o alcoolismo acaba sendo uma alternativa que vai gerando outros problemas dentro das comunidades, seduzidas pelo vício em geral. Quem leva o alcoolismo são madeireiros e garimpeiros. Pra isso é oferecido o álcool. Em seguida vem a religião. A sedução do alcoolismo nas aldeias, quando ocorre, é resultado da invasão da turma que quer explorar ilegalmente as riquezas da floresta".

"O território é o espaço sagrado, de nossos ancestrais, para que nossa existência tenha sentido. Se é invadido e destruído, afeta toda a pedagogia desse povo e portanto a juventude perde referências. Se a gente perde esse chão simbólico, perde nossa capacidade de resistir aos ataques. A questão do território é uma questão muito séria, porque quando a gente lida com a sacralidade desse território, a gente está lidando com o nosso simbólico mais profundo. Claro que dá para requalificarmos, a gente diminui o território e tenta requalificar a nossa compreensão, mas isso leva tempo, e tempo é uma coisa que à vezes nós não temos". "A sociedade, como um todo, tem uma relação meio dúbia com os povos indígenas. Ao mesmo tempo que gostam, adoram, também detestam, odeiam, porque as ideias que foram introjetadas na mente dos brasileiros como um todo, é a ideia contraditória que vem sendo sustentada pelo próprio Estado ao longo da história. A partir de 2013 houve uma retração do Estado brasileiro com os direitos indígenas, de modo que hoje nós escutamos novamente os discursos que foram reproduzidos à exaustão nos últimos 500 anos, de que o índio não tem direitos, que o índio é um selvagem, que o índio é um atrasado, que atrapalha o progresso e o desenvolvimento. Ainda que a gente tenha trabalhado esses conceitos, avançado três quatro passos pra frente, nos últimos 5 anos, o retrocesso foi de 200 passos pra trás". "Se eu pudesse fazer um pedido ao Lula, é para que os indígenas sejam protagonistas da política indigenista brasileira".

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