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Parentes andam 15km em margem de rio atrás de desaparecido no RS; ele não resistiu

Ademir Jaehn Mascyejewski, de 32 anos, estava voltando de Sinimbu para Santa Cruz do Sul quando foi surpreendido por uma enxurrada na estrada que o levaria para casa

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

Os vizinhos de Ademir infelizmente já não podem mais ver o sorriso pelo qual ele era conhecido no bairro em que morava em Santa Cruz do Sul (RS), na região do Vale do Rio Pardo. Natural de Dom Feliciano, o motorista de caminhão foi uma das primeiras vítimas das fortes chuvas que há semanas assolam o Rio Grande do Sul.

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Ademir Jaehn Mascyejewski, de 32 anos, estava voltando de Sinimbu a serviço quando foi surpreendido por uma enxurrada na estrada que o levaria para casa. O caso aconteceu na noite do último dia 29, período em que os temporais ainda começavam a avançar pelo Estado.

Um caroneiro que estava com ele no caminhão até conseguiu se salvar após se agarrar a alguns galhos, mas Ademir foi brutalmente levado pelas águas. O desaparecimento foi precedido por um período de aflição enfrentado pela família, que não conseguia encontrá-lo.

Por dois dias, parentes do caminhoneiro foram até o local onde ocorreu a enxurrada e chegaram a percorrer 15 km às margens do Rio Pardinho, que havia transbordado próximo à estrada. Ademir foi localizado por lá por um morador da região, já sem vida, só no dia 4 deste mês.

Ao menos 157 pessoas morreram no Rio Grande do Sul, mas esse número ainda é considerado parcial e tende a aumentar ao longo dos próximos dias. Ainda há 88 desaparecidos e 806 feridos em decorrência das chuvas, conforme a Defesa Civil. Mais de 2,2 milhões de gaúchos foram afetados pela tragédia climática, em situação que soma 540 mil desalojados.

Ademir Jaehn Mascyejewski estava voltando de um serviço em Sinimbu quando foi surpreendido por uma enxurrada na estrada Foto: Luciane Ribeiro

“Tinha carros arrastados do centro da cidade (de Sinimbu) até as lavouras da região. Era um cenário de choque, um cenário de guerra. Só quem esteve nesses locais consegue ter uma noção do que aconteceu ali”, descreve a consultora ambiental Luciane Ribeiro, de 44 anos, que também é moradora de Santa Cruz do Sul.

Cunhada de Ademir, ela acompanhou o marido e o irmão caçula da vítima nas buscas às margens do Rio Pardinho. Procurado pelo Estadão, um deles indicou Luciane para falar em nome da família. A tragédia causada à população gaúcha é imensurável, mas o relato ajuda a entender um pouco do drama que aflige o Estado.

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Luciane afirma que, apesar de morar com os pais em uma região alta de Santa Cruz do Sul, Ademir teve de ir a trabalho buscar um material em Sinimbu, a cerca de 30 km de sua cidade. “Geralmente na segunda e na terça ele ia para aquela região e sempre retornava por volta de 19h, 20h, quando começa a escurecer”, disse a cunhada.

Nesse horário, no dia 29 de abril, os temporais se intensificaram por lá. “Foi por ali que começaram as chuvas fortes e enxurradas, na região central do Estado. Só depois foram se intensificando mais para perto de Porto Alegre”, disse Luciane. Reportagem recente do Estadão ajuda a entender um pouco do avanço das águas por regiões como o Vale do Taquari.

Município de Sinimbu foi tomado pela lama já no começo do mês; ao menos três pessoas morreram na cidade Foto: Gustavo Mansur/Palacio Piratini - 03/05

Quando tentou voltar para Santa Cruz do Sul pela BR-471, Ademir foi surpeendido por um ponto com água na pista, devido ao transbordamento do Rio Pardinho, mas conseguiu passar sem grandes dificuldades. Minutos depois, se deparou com um outro ponto de alagamento da rodovia, esse um tanto mais crítico.

“Ele até acreditou que tivesse passagem, mas a água tinha subido mais ainda nessa pista. Então o caminhão molhou e ‘apagou’”, disse. “Mas ele conseguiu ficar ainda na pista, em uma parte que estava segura aos olhos dele. Ele acreditava que o rio iria baixar, segundo o caroneiro.”

A ideia era pernoitar por ali para chamar o guincho no dia seguinte, mas a água subiu bastante rápido durante a madrugada do dia 30. “Foi quando veio a enxurrada numa altura de 7, 8 metros, com pau, árvores, com restos de casa, que já vinha fazendo um arraste da parte mais alta de Sinimbu.”

Voluntários realizam trabalho de limpeza em Sinimbu, uma das primeiras cidades atingidas pelas fortes chuvas no Estado Foto: Gustavo Mansur/Palacio Piratini - 03/05

Surpreendidos pelas fortes águas, os dois subiram na caçamba do caminhão no começo da manhã para ficar em um patamar mais alto, mas o veículo tombou com a força da enxurrada. “Conseguiram se segurar por um tempo numa fiação de um poste de luz que estava caído, que não estava energizado, e parece que ele (Ademir) não resistiu e acabou se soltando primeiro”, contou Luciane.

Já o caroneiro conseguiu se agarrar em alguns galhos que passaram, até sair da enxurrada. Ele conseguiu ajuda em uma casa de área rural próxima dali e, sem conseguir retornar para Sinimbu para comunicar o desaparecimento do caminheiro, dormiu por lá. Na manhã do dia 1º, finalmente chegou de carona a Santa Cruz do Sul.

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Foi a partir daí que a família, já aflita pela falta de notícias, entendeu a gravidade da situação. E passou a se empenhar para encontrar Ademir perto do local onde havia sido visto pela última vez. No início, a esperança era localizá-lo ainda com vida, mas, à medida que o tempo passava, ficou evidente que não era tarefa fácil realizar buscas na região.

‘Foi uma tragédia gigantesca’

“A água começou a passar (em mais pontos) em cima da pista, comprometeu pontes que ligam Santa Cruz do Sul ao município de Sinimbu, e nós não conseguimos ir até lá para ver se, de repente, ele tinha conseguido sair, estava em um hospital ou algo do tipo”, disse. “O caos já estava instaurado em Sinimbu, foi uma tragédia gigantesca.”

Só na sexta-feira, 3, quando as chuvas cessaram um pouco, é que Luciane e os dois irmãos de Ademir conseguiram ir até as margens do Rio Pardinho para buscar pelo motorista. “Foi um abalo muito grande para a família quando chegamos no local”, disse ela, que relatou que, pelo risco, os familiares não quiseram que os pais dele fossem.

Ao longo de sexta e sábado, 4, o trio percorreu mais de 15 quilômetros às margens do rio, em buscas que se estendiam do começo da manhã até o fim da tarde. A distância corresponde a praticamente a metade do trajeto entre Sinimbu, onde Ademir desapereceu, e Santa Cruz do Sul, onde moravam.

“Quando saímos do local pela última vez (na noite de sábado), um morador da localidade entrou em contato por um grupo de WhatsApp e nos informou que o havia encontrado”, disse Luciane. O local onde Ademir foi localizado, segundo ela, era bastante próximo ao último ponto em que eles haviam feito as buscas, às margens do Rio Pardinho.

‘Era uma pessoa muito sorridente’

Horas depois, o corpo de Ademir foi levado para o Instituto Médico Legal (IML) de Santa Cruz do Sul e reconhecido pelos familiares, o que foi facilitado por uma tatuagem que o caminhoneiro tinha no braço. Ele foi velado cerca de uma semana após o desaparecimento, apenas no último dia 6, em cerimônia marcada por lembranças.

Ademir foi velado cerca de uma semana após o desaparecimento, apenas no último dia 6, em cerimônia marcada por boas lembranças Foto: Luciane Ribeiro

“Meu cunhado era uma pessoa muito sorridente, a vida dele era muito intensa, em tudo que fazia. Ele brincava com o sobrinho – meu filho – e com a filha dele, que hoje mora em Dom Feliciano com a mãe. Adorava criança”, disse Luciane. Entre os hobbies preferidos, gostava de assistir filmes e séries.

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“Era aquela pessoa que passava na rua e brincava com os vizinhos, buzinava para os vizinhos. Foi algo muito comentado no velório dele”, acrescentou a cunhada. Ademir Jaehn Mascyejewski faleceu aos 32 anos e deixa uma filha de 10 anos. Até o momento, além dele, outras duas pessoas morreram pelas chuvas em Sinimbu, segundo a Defesa CIvil. Em todo o Rio Grande do Sul, já são 154 vítimas.

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