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Quem é o Exu Tranca-Rua, que está no centro da polêmica envolvendo a cantora Ludmilla?

A artista, que é evangélica, está sendo acusada de intolerância religiosa, ao exibir, em seu último show, imagens da pichação ‘Só Jesus expulsa o Tranca-Rua das pessoas’. Artista diz que frase foi tirada de contexto

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Por Roberta Jansen
Atualização:

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O espírito da Umbanda e da Quimbanda chamado de Tranca-Rua ganhou os trending topics do X (antigo Twitter) nesta segunda-feira, 22, por conta da polêmica provocada pela cantora Ludmilla em seu show no último fim de semana no Festival Coachella, nos Estados Unidos.

Frase foi veiculada no telão durante apresentação da cantora Foto: Coachella 2024

No show Rainha da Favela, um telão exibe várias imagens do cotidiano das comunidades. Entre as imagens destacadas estão uma da pichação “Só Jesus expulsa o Tranca-Rua das pessoas” e outra ainda de uma oferenda sendo pisoteada. Representantes de religiões de matriz africana criticaram o posicionamento da cantora, que é evangélica, acusando-a de intolerância religiosa.

O babalaô Ivanir dos Santos disse que vai entrar com uma representação judicial contra a cantora Foto: Wilton Junior/Estadão

O babalaô Ivanir dos Santos, professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ), informou que pretende entrar na Justiça com uma representação contra a cantora.

“O Tranca-Rua é um egum na umbanda, um catiço que representa as populações marginalizadas”, explicou Santos, se referindo a espíritos que buscam abrir os caminhos.

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  • Os eguns correspondem aos indivíduos que pertencem a grupos marginalizados da sociedade, como escravizados, indígenas, mulheres, crianças, idosos.
  • Nos terreiros de umbanda eles se convertem em entidades como o Preto Velho, a Pomba Gira, o Caboclo, e os diversos exus, entre eles o Tranca-Rua. Ele costuma se apresentar com uma capa, uma cartola e um tridente.

“Tranca-Ruas é um Exu que atua na Umbanda e na Quimbanda. Seu nome se refere a sua função de abertura de caminhos em todos aspectos. O nome designa uma falange de espíritos, cada um com sua história singular”, explicou a umbandista Tania Jandira, do Terreiro da Aldeia do Caboclo Arari, integrante da Comissão de Comabate à Intolerância Religiosa.

“Ele se caracteriza usando capa e cartola, o que leva alguns a acharem que foi um nobre, em sua vida terrena; mas não necessariamente, pois pessoas de classe média também assim se vestiam. Também apresenta um tridente, o que fez com que intolerantes religiosos a usarem seu nome, associando ao Diabo.”

Não se trata de uma figura maligna como as religiões católica e evangélica fazem crer, desde o início da colonização, muito menos do diabo. Pelo contrário, o Tranca-Rua costuma ser evocado para abrir caminhos.

“Vamos entrar com uma representação contra ela para que se explique e se retrate porque ela está reproduzindo um preconceito do qual ela mesma é vítima, como mulher, negra, periférica, evangélica e LGBT”, afirmou o babalaô. “Ela não pode reproduzir uma frase dessas e achar que é algo banal.”

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‘Tiraram do contexto’, diz cantora

Em suas redes sociais, Ludmilla afirmou que o vídeo foi feito por uma artista “negra e periférica, justamente para que tivesse um olhar de dentro para fora” e que mostra apenas a realidade das favelas brasileiras:

“(...) Hoje tiraram do contexto uma das imagens do vídeo do telão do show Rainha da Favela, que traz diversos registros de espaços e realidades a qual eu cresci e vivi por muitos anos, querendo reescrever o significado dele, e me colocando em uma posição que é completamente contrária à minha. Rainha da Favela apresenta a minha favela, uma favela real, nua e crua, onde cresci, mas, infelizmente, onde se vive muitas mazelas: genocídio preto, violência policial, miséria, intolerância religiosa e tantas outras vivências (...)”

O babalorixá de umbanda Cristiano Sant-Anna de Medeiros, que é pesquisador da UERJ, explicou a origem da frase.

“Há uns dez anos essas frases apareceram pixadas por tudo quanto é canto, sobretudo na Baixada Fluminense e nos subúrbios do Rio”, lembrou o religioso. “E houve uma grande campanha para que essas frases fossem retiradas das paredes, uma campanha de conscientização sobre o racismo religioso. Ela trouxe essa imagem de volta, em 2024, num contexto de abril verde, que é o mês da luta contra o racismo religioso.”

Professora do programa de pós-graduação em educação da UERJ, Stela Guedes Caputo contou que já usou o exemplo da pichação em aulas sobre racismo religioso.

“Eu já levei a frase várias vezes para a sala de aula, para discutir o racismo religioso e a intolerância. Ou seja, a frase precisa ser sempre contextualizada e problematizada, do contrário pode estimular mais perseguições aos terreiros. É uma frase escrita e reescrita nos muros das ruas, ruas sempre em disputa”, explicou.

“No contexto de perseguição às religiões de matrizes africanas é preciso ter muito cuidado quando destacamos frases como essas e, sobretudo, as fazemos circular da maneira que ela fez. Se um conservador vir essa frase em um grande show se sentirá representado. Um candomblecista ou umbandista, se sentirá ofendido e, mais uma vez, atacado.”

A especialista disse, no entanto, que é preciso aproveitar a oportunidade para abrir o debate sobre o tema.

“Prefiro aprender com Exu e comer com Exu, aquele que come o que lhe é oferecido e depois devolve diferente e novo. E Tranca-Rua é um Exu. Um Exu brasileiro, uma entidade muito poderosa, cultuada, reverenciada, sobretudo e quase exclusivamente, nos terreiros de umbanda, mas também nos candomblés”, contou.

“Seus pontos cantados nos terreiros são extraordinários. E para esse episódio envolvendo a artista, posso pensar nesse: (...) ‘Deu um clarão na encruzilhada/E do clarão surgiu uma gargalhada/Não era o sol, nem era a lua/O que brilhava era o mestre Tranca Ruas’. Prefiro ver um clarão aberto para rir e conversar com Exu. Um clarão para o debate.”

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*O conteúdo foi produzido em parceria com a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro.

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