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Delícia, Rua do Ouvidor, 110

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Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Livrarias exercem fascínio sobre o nosso imaginário. Talvez porque no fundo abriguem o imaginário, sejam o próprio imaginário. Circular entre livros excita a fantasia,o delírio. Um filme como Nunca te Vi, Sempre te Amei, levou um mundo de turistas a Londres para olhar a livraria onde um dos personagens recebia cartas amorosas. Os muitos livros e as milhares de citações sobre a Shakespeare and Co., de Paris, freqüentada por Joyce, Hemingway, Fitzgerald, Gertrude Stein, tornaram a livraria um lugar universal. O cheiro das livrarias é particular, mistura de papel e tinta e alguma poeira, mas acima de tudo elas capturam o espírito das pessoas que as freqüentam, em geral bons espíritos. No Brasil tivemos várias livrarias glorificadas. Em São Paulo, a Jaraguá, na Marconi, com seu salão de chá; a Francesa, na Barão de Itapetininga, ainda no mesmo lugar; a Francisco Alves, no centro velho, a Capitu, na Rua Pinheiros, que cativava pela simplicidade e atmosfera. Para não falar da Cultura, que em poucos meses virou ponto turístico. E também a Livraria da Vila, que mostrou que, investindo e modernizando, livro é negócio. Poucas livrarias, no entanto, terão atingido o charme da José Olympio, no Rio de Janeiro, na Rua do Ouvidor, 110, inaugurada em 1934, que sobreviveu décadas e desapareceu. Mas ela nasceu em São Paulo em 1931 e se transferiu para o Rio. ''''A livraria era o espaço de convívio, de bate-papo, de troca de idéias, em que se encontravam desde o estudante à procura do livro escolar até o bibliófilo à cata de uma raridade. O livreiro sabia das preferências de cada um de seus clientes mais assíduos, muitos deles fregueses de caderno.'''' ''''Era aquele o endereço para onde convergiam os sonhos de jovens escritores País afora'''', comenta Lucila Soares, que escreveu Rua do Ouvidor 110 (203 páginas saborosas), livro superdocumentado e pesquisado, a ser lançado em São Paulo no dia 1º de outubro na Livraria da Vila da Alameda Lorena, repleto de história deliciosas sobre um dos momentos mais efervescentes e glamourosos da nossa literatura. Um livro cujo interesse transcende o da literatura, é a biografia de um lugar, de um homem, de um tempo. ''''Uma livraria com alma'''', define Lucila. Em 11 anos, de 1931 a 1942, a JO lançou 568 edições, 70% de brasileiros, com uma tiragem - pasmem - de 2.203 milhões de exemplares. Na livraria se encontravam, se reuniam, discutiam, riam se debatiam em ciúmes e vaidades, fofocavam, brigavam (Osvaldo Orico deu uns tapas em Marques Rebelo) autores do porte de Graciliano, magro, seco, taciturno, José Lins do Rego, gordo, falastrão, Carlos Drummond de Andrade, Alceu Amoroso Lima, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Aurélio Buarque de Holanda, Jorge Amado, Álvaro Moreira, Raimundo Magalhães Júnior, Josué Montello, Guilherme Figueiredo, Ledo Ivo, Rubem Braga, Octavio Tarquínio de Souza (excelente ensaísta, dirigiu para a JO a coleção Documentos Brasileiros, jamais excedida em importância de títulos). Mas ali circularam também Sartre, Camus, Gabriela Mistral, Neruda. Ali igualmente se lutou contra a censura de Vargas. As capas da JO eram feitas por Santa Rosa, Goeldi, Portinari, Cícero Dias, Poty, Luis Jardim, celebrados artistas plásticos. Breves histórias - na realidade quase centenas - ilustram uma época dourada (não há como não usar o termo) da história da literatura brasileira, da história do Rio de Janeiro. Um tempo diferente em usos, costumes, educação, relações, amizades, em que os maiores escritores do País estavam sediados no Rio, ainda que vindos de Alagoas, Paraíba, Pernambuco, porque o Rio era o centro irradiador. E porque no Rio estava a Casa. A Casa de JO. Traduzindo, a Casa era a editora e também a livraria José Olympio. JO era, claro, José Olympio Pereira Filho, nascido em Batatais em família humilde, uma das figuras mais mitificadas de nossa história literária. Um homem grande, gordo, falador, amigo de Deus e do mundo, empresário audaz, criativo, divertido, bon vivant, bom bebedor, bom jogador, dono de cavalos, magnífico editor. A moderna literatura se construiu à base de sua ousadia e talento. Ele lançou tiragens loucas para a época, fez marketing de livro usando avião (um espanto), selecionava frases dos livros e colocava na vitrine junto ao exemplar (novidade), deixava um exemplar à disposição dos fregueses para que dessem uma filada, mantinha um caderno com vales para seus editados. Inventava, inventava. No domingo, escritores se reuniam na garagem de Aníbal Machado em Ipanema. Num daqueles dias, Rachel de Queiroz, Afonso Arinos, Ribeiro Couto e Manuel Bandeira conversavam quando o dono da casa, proibido de beber, se aproximou e perguntou se podia tomar um gole. ''''Posso beber do copo de vocês, porque não tem nenhum tuberculoso aqui.'''' Ao que Bandeira retrucou: ''''Ao contrário, Aníbal, fora a Rachel somos todos tuberculosos aqui.'''' Na verdade, o tuberculoso era Bandeira. Quando chegou ao Rio, nos anos 30, Rachel de Queiroz juntou-se a Adalgisa Nery, Dinah Silveira de Queiroz e Lúcia Miguel Pereira. Quatro grandes mulheres à frente de seu tempo, todas com lugar destacado na literatura brasileira.. Mas um tempo em que até os suplementos literários achavam que o lugar delas era na cozinha. Rachel era engraçada, falava alto, dava gargalhadas escandalosas e os homens a aceitavam na hora de contar piadas fortes. Lúcia Miguel Pereira era linda e a encarnação da intelectual sofisticada. Adalgisa Nery era bela, de uma beleza extravagante, tinha o poder de virar a cabeça dos homens. Graciliano Ramos teria tido uma paixão por ela. Assim como Murilo Mendes e Murilo Miranda. Ela acabou se casando com Lourival Fontes, um dos homens mais feios da terra e ainda por cima chefe de censura do Getúlio. Dinah, paulista, era a autora de maior sucesso de público do Brasil com Floradas na Serra. Bonita e extremamente preocupada com a aparência. Mas disfarçava a vaidade. Um dia, em Copacabana, olhava embevecida uma vitrina quando foi surpreendida por Sérgio Buarque de Holanda e sua mulher Maria Amélia. Dinah sentiu-se na obrigação de justificar: ''''Vocês sabem que apesar de intelectual não consigo me livrar de certas futilidades.'''' PS: A dinastia Pereira continua, basta ver o sucesso da editora Sextante

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