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''Não encontrei a cultura tupi no auge. O que vi foram fragmentos''

Lévi-Strauss fala dos obstáculos, riscos e bons acasos que cercaram suas expedições às tribos indígenas, nos anos 1930

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Por Redação
Atualização:

Em novembro de 2006, durante as filmagens do documentário Trópico da Saudade, visto em avant-première na semana passada em Paris, o antropólogo e cineasta Marcelo Fortaleza Flores, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, realizou uma série de entrevistas com o antropólogo Claude Lévi-Strauss. Do material, ele selecionou os trechos a seguir, publicados com exclusividade pelo Estado, em que o antropólogo relembra a confecção de Tristes Trópicos, as primeiras visitas a sociedades indígenas e o ambiente intelectual que encontrou no Brasil dos anos 1930. Ao que parece, existe um mal-entendido sobre a razão pela qual o senhor chamou seu livro de memórias do Brasil e outros países tropicais de Tristes Trópicos. Por que, afinal, os trópicos são tristes? É uma velha história, enfim... De fato, quando voltei do Brasil, em 1939, alguns meses antes da guerra, comecei a escrever um romance, e o título desse romance era Tristes Trópicos. Creio que escrevi em torno de 30 páginas, o bastante para me convencer de que não fui feito para esse gênero de literatura, e o abandonei completamente. Anos mais tarde, em 1954, escrevi o livro que levou este título, que era justamente daquele romance e ficou pairando na minha memória. Mas não há nenhuma relação direta, salvo o fato de que tanto nos trópicos vazios da América do Sul como nos trópicos abarrotados da Ásia do Sul, onde estive alguns anos depois, eu tive, por razões diversas, a mesma sensação de tristeza. Assim, o título, de algum modo, se justificava em termos retrospectivos, mas sem que haja um verdadeiro elo histórico. Trouxe dessas viagens um sentimento de tristeza que, de alguma maneira, justificou o título que eu tinha usado antes, por razões completamente diferentes. O senhor não continuou o romance? Não. E foi melhor assim. Era muito ruim. No entanto, há passagens bem literárias em Tristes Trópicos. Como o pôr-do-sol no início do livro... Bom, esse pôr-do-sol, eu o descrevi ao ver o Sol se pondo do navio que, em 1935, me levava ao Brasil. O senhor disse que chegou ao Brasil com um único livro de bolso, Voyage à la Terre du Brésil, de Jean de Léry (1534-1611). Qual foi a importância da obra durante a viagem? Carreguei este livro comigo porque já o tinha lido antes de partir. Procurei me informar, me documentar sobre o que me esperava e o que mais me interessaria. E, claro, sobre os primeiros contatos entre os ocidentais e os indígenas. Léry deixou um testemunho inesquecível. Para mim, seu livro foi uma espécie de catecismo, se posso dizer assim. Eu o carreguei sempre comigo e constantemente relia algumas passagens. Quando me deparei, depois de séculos, com aquelas que foram as primeiras experiências de contatos com os indígenas, senti-me mais próximo de Jean de Léry do que a distância dos séculos não poderia fazer crer. O senhor escreveu também que encontrou ali um pouco do universo indígena que o próprio Léry tinha já descoberto. Escute... eu imaginei... com certeza, foi por acaso... Mas quando, um dia, nos confins da baía do Rio de Janeiro, dona Heloisa Alberto Torres, que era diretora do Museu Nacional, levou-me a um sítio arqueológico recém-descoberto, e vi sendo tirada da terra uma grande urna tupi, decorada exatamente como Léry tinha descrito, e encontrada no mesmo local... sim, tive a sensação que retornava nos séculos. Durante sua permanência no Brasil, o senhor manteve contato com artistas e intelectuais brasileiros? Com artistas, não muito. Mas com vários intelectuais, sim. O ambiente do Departamento de Cultura de São Paulo era muito animado, muito ativo, e com meus colegas... enfim, mantive uma grande amizade com alguns deles, como o historiador Sérgio Milliet, o bibliógrafo Rubens Borda de Morais, o sociólogo Caio Prado Júnior e particularmente Paulo Duarte, jornalista e escritor, que teve um grande papel na revolução constitucionalista em 1932, uma amizade que não se restringiu apenas ao Brasil, mas continuou nos Estados Unidos, onde ele se refugiou durante a guerra, e em Paris, onde viveu muito tempo após a guerra. Paulo era escritor. Deixou livros de memórias em vários volumes, que aliás, estão aqui... Como foi seu relacionamento com Mário de Andrade? Mário de Andrade, que eu admirava muito como escritor, era então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e fizemos juntos excursões a pequenas cidades em torno de São Paulo, por ocasião de festas populares. Foi graças a ele que conheci um pouco do folclore tradicional brasileiro, como os combates mouros e cristãos (o bumba-meu-boi). Sou especialmente agradecido a ele porque, quando armei minha expedição para visitar a tribo dos índios nhambiquaras, tive dificuldades políticas. Era a época da ditadura de Getúlio Vargas, do Estado Novo, havia muita xenofobia e os militares se opunham a que um estrangeiro penetrasse numa região que consideravam estratégica, pois estava próxima das fronteiras. Só realizamos a expedição com a ajuda de Mário de Andrade, e então ela foi transformada de expedição puramente francesa numa expedição franco-brasileira. Na minha primeira expedição não houve problema algum. A situação em 1938 era bem diferente da de 36. O que o senhor viveu em termos de xenofobia no Brasil durante o Estado Novo? Tive dificuldade de deixar o Brasil, porque os primeiros acordos previam que as coleções de objetos seriam compartilhadas entre o Museu do Homem, na França, e o Museu Nacional, no Rio. Só que, durante o tempo em que eu trabalhava em campo, o Museu Nacional, por causa de acordo firmado com Mário de Andrade, decidiu que a parte brasileira das coleções iria para o Departamento de Cultura - e não para o próprio museu. Só que os serviços de polícia não sabiam. Portanto, no momento de partir, houve problemas, quase não consegui deixar o País. No final, tudo se acertou. Junto com Mário de Andrade o senhor visitou grupos indígenas perto de São Paulo? Não com Mário de Andrade. Realizei algumas pequenas viagens, principalmente no Estado do Paraná, visitando os índios caingangues. Mas não foi com Mário de Andrade, que nesse momento estava interessado essencialmente no folclore. Fez essas viagens com outros pesquisadores franceses? Consta que as viagens ao Paraná foram realizadas com o geógrafo Pierre Monbeig. Visitou os caingangues com ele? Pierre Monbeig jamais fez parte dessas expedições. Fizemos algumas viagens juntos nas zonas pioneiras do Paraná, mas uma coisa totalmente diferente. Participei intensamente dessas viagens, já que Monbeig estava mais interessado nas instalações de novos colonos em regiões até então desabitadas ou pouco povoadas. Jamais visitamos juntos as tribos indígenas. Estivemos em viagens a cidadezinhas e pequenas estações de estrada de ferro a Noroeste, estações que os ingleses construíam pelo Estado do Paraná. O senhor poderia descrever o incidente que mencionou no livro Tristes Trópicos, quando levou balões à tribo dos nhambiquaras e o perigo que esses balões representaram? Durante festas populares em São Paulo eu vi esses balões e tive a idéia de levar alguns até as aldeias para divertir os indígenas. Evidentemente, não duvidava que eles ficariam aterrorizados. Levei os balões. Uma bela noite, resolvi organizar uma pequena festa para eles, para distraí-los. E então acendi os balões. Eles inflaram e subiram ao céu. Até então tudo correu bem. Mas, nesse momento, um verdadeiro clima de terror se verificou em meio ao grupo com o qual eu estava e eu só ouvia o termo "atasu, atasu", que designa os espíritos do mal. Nesse momento, a situação ficou muito ruim. Na manhã do dia seguinte, tentei dar um pequeno curso divertido de física para os índios e mostrar a eles que, quando se acendia o fogo e se deixava um pedaço de papel de seda embaixo, ele subia com a fumaça e isso era um fenômeno normal. Mas não sei se ficaram interessados. Enfim, o medo passou e nossas relações continuaram tão amigáveis como antes. Em Tristes Trópicos, o senhor mencionou o episódio de uma conversa com uma criança, que acho muito esclarecedora sobre o respeito que os índios têm pelos pequenos. Tinha algo a ver com um macaquinho... Não me lembro muito bem... Estou perdendo a memória com a idade... Não, o macaco foi com os nhambiquaras. Lembro-me que eu queria um objeto... creio que estava com um pequeno grupo de índios carajás, que encontrei no Araguaia. Jamais trabalhei com os carajás, mas havia duas ou três famílias que estavam acampadas ali, à margem do rio. A menina tinha uma dessas bonecas que são tão bonitas, tão inquietantes, lembram muito aqueles orientais do segundo ou terceiro milênio antes da nossa era. Eu queria uma dessas bonecas e então pedi à mãe, que as confeccionara. Ela me respondeu "não, não é minha, é da minha filha". Precisei me entender com a menina, ofereci um anel, um colar, até ela se decidir a me dar a boneca. Qual foi a participação da sua primeira mulher, Dinah, nas expedições que o senhor realizou no Brasil? Na expedição de 1936, é bom dizer que não tínhamos uma verdadeira formação no campo da etnografia. Ambos havíamos prestado concurso para professor universitário suplente na área de filosofia. Éramos filósofos de formação. Mas decidi me dedicar à etnologia e comecei, sem seguir nenhum curso específico, aprendendo como autodidata. Minha primeira mulher, que se sentia muito mais filósofa, não tinha nenhum interesse pela etnografia. Mas, quando chegamos a São Paulo, sentimos uma tal curiosidade, uma tal necessidade, vimos que teríamos de compensar a falta de conhecimentos. Tínhamos instruções do Museu do Homem, livros, então disse à Dinah: "Bom, você vai se ocupar dos elementos de antropologia física" - como medir um crânio, era muito importante ainda naquela época, hoje já não é tão usado - "e se ocupar também do folclore". Foi assim que ela fez amizade com Mário de Andrade. Quanto a mim, me dediquei à sociologia e à etnografia propriamente dita. Foi assim que começamos, aprendendo à medida que transmitíamos os ensinamentos. Embora, na primeira expedição até os cadiuéus e os bororos, Dinah tenha se ocupado essencialmente da cultura material. Foi ela quem confeccionou a maior parte das fichas dos objetos que recolhemos, enquanto eu me ocupava da organização social e de parentesco e outras coisas. Quanto à segunda expedição, ela não participou porque, tão logo chegamos à tribo dos nhambiquaras, Dinah foi atingida por uma oftalmia purulenta grave que quase a deixou cega, e ela precisou ser retirada do local urgentemente. Como foi sua relação com Luis de Castro Faria, o antropólogo brasileiro que o acompanhou na expedição de 1938? Ele foi indicado pelo Museu Nacional como "fiscal" da expedição, pois achavam que não se podia deixar estrangeiros entrando nessas áreas sozinhos. Ele era muito jovem. Mais jovem do que eu... bom, eu não era velho, mas ele era mais jovem do que eu e totalmente inexperiente. Viajamos juntos por meses, salvo durante dois períodos em que Castro Faria também foi afetado por aquela oftalmia purulenta, obrigado a ficar em Campos Novos. E uma outra vez, quando estávamos com os índios tupis-guaranis, houve um grave acidente com um de nossos homens, cujo fuzil de caça explodiu na própria mão, deixando-a triturada. Como representante das autoridades brasileiras, ele era o responsável pela vida daquele jovem, então o levou ao nosso médico, que também estava doente, para ser cuidado. Por isso, passei algumas semanas sozinho entre os índios tupis. Durante o resto do tempo, viajamos como bons camaradas. Mas, enfim, na sua juventude, Castro Faria se sentia um pouco pressionado pelas responsabilidades, portanto, fui obrigado a renunciar a muitas coisas que gostaria de ter feito naquele momento. Poderia falar sobre sua experiência com os mundés, cuja tribo visitou em 1938, mas que até então não haviam tido contato com o exterior? Quando estava entre os tupis-guaranis, encontrei-me com um ambulante negro que estava por ali, nas suas peregrinações. Esses ambulantes faziam coisas muito difíceis, como passar de piroga com sua mercadoria pelas bacias do Machado e Guaporé. Por isso, ele teve de fazer um desvio por terra, levando vários dias para passar de uma bacia fluvial para outra. Uma grande aventura. Foi ele quem me revelou a existência de índios dos quais a literatura não tratava na época. E eram os índios mundés (aicanãs). Naturalmente, tive vontade de vê-los. Montamos uma pequena expedição, o que foi muito apaixonante porque, para um etnólogo, ver índios que ninguém jamais viu sempre emociona. Mas, por outro lado, eu não sabia que língua falavam. E não poderia ficar ali por muito tempo para aprendê-la. Foi uma experiência ao mesmo tempo comovente e decepcionante. Como ocorreu com Jean de Léry ? Sim... Léry... ele ficou bastante tempo com os índios ... para falar um pouco a língua. Eu... não... era o fim da expedição... já não tinha mais recursos. Não tinha mais dinheiro e só podia permanecer ali apenas alguns dias. Você sabe, Léry conheceu a cultura tupi no auge. Eu encontrei apenas fragmentos... um pequeno clã formado por uma dezena de pessoas. Parece que acabaram de encontrar um outro grupo, não muito distante dali, que também não teve contato algum até agora. Mas são restos apenas... O senhor disse que os índios bororos vieram à França visitá-lo. Como foi isso? Eles vieram na companhia de pesquisadores da Universidade Salesiana de Campo Grande. Foram a Gênova, na Itália, para participar de uma exposição ou algo assim. Eram jovens bororos, nos quais identifiquei exatamente a imagem daqueles que encontrei lá trás - os bororos estão entre os mais belos índios do sertão brasileiro. Também encontrei colegas que ensinavam a língua bororo na universidade salesiana. Foi uma experiência paradoxal, pois embora fôssemos todos colegas, eles resolveram cantar e dançar para mim, neste escritório. E eu reconheci exatamente os cantos e danças que ouvi 70 anos atrás. Que impressões teve do Brasil quando de sua visita em 1985. O País havia mudado muito? Passei exatamente cinco dias no Brasil. Portanto, foi uma viagem curta demais para formar uma opinião. Com certeza, São Paulo não tinha mais nenhuma relação com a cidade meio colonial que eu conheci. Poderia falar sobre os Carnets de Voyage (Cadernos de Viagem) que reencontrou recentemente (obra publicada pela Editora Plêiade)? Durante a viagem de Cuiabá a Utiariti, que durou uns dez dias, fiz um diário, que perdi completamente e reencontrei por acaso há um ou dois anos. Mas não é nada, só uma dezena de páginas de anotações. Pretendo republicá-las em anexo ao livro (Tristes Trópicos), para mostrar a diferença entre uma viagem narrada com base em lembranças que datam de 15 anos e as impressões recolhidas in loco na época. Cronologia 1908 Claude Lévi-Strauss nasce em Bruxelas, Bélgica, no dia 28 de novembro 1926 Faz estudos de filosofia e direito em Paris 1935 Desembarca no Brasil e assume o cargo de professor de sociologia na USP, onde fica até 1938, ano em que realiza uma grande expedição a Mato Grosso e à Amazônia. (Em 1935, viajara ao Paraná e Goiás e, em 1936, realizara curta expedição ao Pantanal.) Retorna à França, de onde sai em 1941, por conta do nazismo. Vai morar nos EUA. Regressa em 1947 1955 Publica Tristes Trópicos, seis anos depois de Estruturas Elementares do Parentesco, primeira obra. Lança Antropologia Estrutural (1958) e entra para o Collège de France 1964 Lança O Cru e O Cozido, primeiro dos quatro volumes de Mitológicas 1985 Volta ao Brasil pela primeira vez 1994 Lança Saudades do Brasil. Dois anos depois, vem Saudades de São Paulo. Essas obras sucedem História de Lince e Olhar, Escutar, Ler 2005 Recebe o 17.º Prêmio Catalunha, na Espanha

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