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Villela acerta contas com o passado

Montagens de Shakespeare e Camus são maneiras de refletir sobre alerta desses autores em relação ao arbítrio dos poderosos

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file://imagem/93/vilella.jpg:1.93.12.2008-05-21.16 Em 20 anos de carreira, o diretor Gabriel Villela já dirigiu 30 peças, além de shows musicais. Numa análise rápida desse currículo, a busca do entendimento da tragédia marca a trajetória do diretor mineiro, que já passou pelos textos mais desafiadores da história do teatro, de Schiller (Mary Stuart) a Heiner Müller (Quartett), passando por Calderón de la Barca (A Vida É Sonho), Goethe (Fausto Zero), Büchner (Leonce e Lena) e Beckett (Esperando Godot). A eleição de Ricardo III, após ter encenado Romeu e Julieta (com o Grupo Galpão, em 1991), e de Calígula tem, portanto, um significado particular nessa busca, que não é apenas estética, mas filosófica. Antes de se curvar ao estereótipo de Calígula como um imperador perverso e de hábitos um tanto excêntricos, interessa a Villela saber até que ponto essa criação do imaginário popular não nasceu de um desejo do antigo povo romano, de ver a própria imagem refletida no espelho distorcido de seus governantes. O fato de estudos acadêmicos apontarem para a insanidade de Calígula só reforça a suspeita de que alguém louco como Hitler ou Mussolini só não foi enclausurado pela massa porque, de um modo ou de outro, eles foram a expressão de um desejo coletivo - e isso fica claro com as freqüentes demonstrações neofascistas na Europa de Berlusconi e companhia. Ao conceber Calígula como um monstro mítico, fiel à própria lógica e infiel à humanidade, Camus contou um pouco a história desses tiranos - e não é por acaso que o argelino começou a escrever a peça em 1938, um ano antes de a 2ª Guerra começar, encenando-a no ano em que o conflito terminou. Calígula é um alerta sobre o arbítrio do poder. Ou sobre a ''sordidez humana exercitada ao paroxismo'', segundo o próprio Villela, que vê um ''parentesco genético'' entre o cruel César e a arte da retórica e da corrupção política - vide o escândalo do mensalão - que se pratica nos dias de hoje. ''À conspiração palaciana que mata Calígula, perfurando seu corpo incontáveis vezes, ele responde, diante de um espelho, que está vivo e que vai atravessar os séculos'', observa o diretor, justificando a atualidade da peça de Camus. Tanto a peça de Shakespeare como a de Camus são montagens que, segundo Villela, vão na contramão do teatro mais digestivo e burguês feito hoje no Brasil. ''Nossa arte está muito influenciada pela lógica do capitalismo'', diz, concluindo que o teatro ''deve apontar para as patologias sociais, como a sífilis na corte dos Bórgias'', compara. E por que razão recorrer ao clássico Shakespeare ou ao Nobel (de 1957) Camus para traduzir a tragédia contemporânea? Os dramaturgos brasileiros seriam inábeis ao tratar dela? ''Não, de jeito nenhum'', responde Villela, citando autores como Newton Moreno, Dib Carneiro Neto e o mineiro Eid Ribeiro. Só que o diretor tem um ajuste de contas com seu passado barroco. ''Nada contra ele, pois nasci em Minas, no absolutismo da corte, mas creio que, depois de Shakespeare e Cervantes, estamos condenados a ser Hamlet ou Quixote'', observa. ''É essa passagem para o barroco que definiu para a história contemporânea valores éticos, morais e estéticos.''

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