Análise: A morte de Jean-Luc Godard

Ao longo da vida, o cineasta foi um gigante: produziu mais de 127 obras audiovisuais, de filmes preto e branco a 3D, o último em 2019

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Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Como descrever um continente inteiro em poucas linhas? É o desafio que devemos enfrentar agora que a morte coloca ponto final na obra de um gigante do cinema como Jean-Luc Godard.

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Ele teve vida longa, 91 anos, e produziu muito. Se consultarmos o site de cinema IMDB encontraremos mais de 127 obras audiovisuais associadas a seu nome. O desafio de abarcar o continente é colocado tanto pela extensão da obra quanto por sua diversidade. Godard destinou seu trabalho ao cinema, mas também ao vídeo e à televisão. Fez filmes em preto e branco, a cores e em 3D. Trabalhou em celuloide, vídeo e digital. Foi um dos cruzados da chamada “política dos autores”, característica da nouvelle vague francesa, mas terminou por defender a abolição da autoria. Começa por um diálogo com o cinema norte-americano e termina fazendo filmes não-narrativos, dispositivos ensaísticos sobre a vida, a política, as artes e, claro, sobre o próprio cinema.

Godard sobreviveu a todos os seus companheiros de nouvelle vague (François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohmer). Não fez o primeiro longa do grupo. Truffaut já estreara com Os Incompreendidos (1959) e Chabrol, antes dele, com Nas Garras do Vício (1958). Porém, como lembra o crítico e historiador Jean Tulard, o verdadeiro manifesto da nouvelle vague é Acossado, de 1960, filme que deixou todo mundo chapado. Ou contrariado.

Partindo de um roteiro de Truffaut, Godard põe a forma cinematográfica de cabeça para baixo com seus cortes abruptos de câmera e planos longos pelas ruas de Paris. É notável a liberdade com que segue esse par improvável formado por um pequeno bandido (Jean-Paul Belmondo) e a garota americana que vende jornais e anda atrás de uma aventura (Jean Seberg). Os cortes abruptos da narrativa soaram aos tradicionalistas como erros técnicos. Engano. Godard criava e o que inventava era incorporado à linguagem do cinema moderno. Aliás, tudo, nesse filme, respira modernidade - do ritmo das cenas à música de jazz, a liberdade com o sexo e o comportamento em geral, o jeito cool de Belmondo e a ternura despojada de Seberg, inesquecível com seus olhos intensos e cabelinho curto. Era todo um programa para uma era de contestação e aspiração à liberdade que culminaria com o maio de 1968 em Paris. Acossado rodou mundo e influenciou várias cinematografias, inclusive a brasileira.

A atriz Jean Seberg, de 'Acossado', ao lado de Godard em Paris, nos anos 1960 Foto: AFP

Se Godard era o mais vanguardista de toda a turma da nouvelle vague, era também o mais político. Quando seus companheiros fechavam um pouco os olhos para a questão argelina, que dividia a França naquela época da Guerra da Argélia (1958-1962), Godard fazia filmes engajados como Les Carabiniers (1962) e Le Petit Soldat (1963). Engajados, porém nada didáticos.

Praticamente ao mesmo tempo, lançava uma comédia de ruptura como Uma Mulher É uma Mulher (1961) e aquele que, para muitos é seu filme mais lindo e tocante, Viver sua Vida (1962), a comovente história de Nana (Ana Karina) em doze quadros, desde seu trabalho num magazine até a prostituição. Há uma referência à Joana D’Arc de Carl Dreyer, cujas imagens comovem Nana - e o espectador.

Seria o mais belo dos filmes de Godard? Há controvérsias, porque existe O Desprezo (1963). Baseado no romance do italiano Alberto Moravia, é considerado um dos mais deslumbrantes trabalhos de Godard. Brigitte Bardot, no ápice da beleza, contracena com Michel Piccoli. São marido e mulher numa trama sinuosa, filmada na Ilha de Capri, em que o amor cede vez a seu contrário, a frieza. E o desprezo, como diz o título. O impacto visual dessa obra a cores é impressionante. O grande diretor alemão Fritz Lang trabalha como ator na obra.

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Como o íntimo e o social encontram-se presentes na obra de Godard (são comunicantes e não se excluem), ele lança outro filme fundamental em 1967, A Chinesa, que claramente prefigura o maio de 1968 com sua discussão sobre os rumos da contestação política e do maoismo.

No final dos anos 1960, o militante Jean-Luc, funda, com Jean-Pierre Gorin, o Grupo Dziga Vertov, de tendência maoista. Um dos líderes da chamada “política dos autores”, da revista Cahiers Du Cinéma, Godard agora abraça a tese de um cinema coletivo e militante. O nome é tirado do cineasta de Câmera-Olho, Vertov (1896-1954), um dos pontas de lança da vanguarda soviética. Para Gorin e Godard, a questão não era fazer “filmes políticos”, mas fazer politicamente filmes políticos. Recusam-se a se comportar como “profissionais” do cinema, transformando-se em militantes da revolução. A questão passa a ser “para quem” e “contra quem” se faz o cinema.


O diretor em 1988, durante o Festival de Cannes  Foto: AFP


Dessa fase é Vento do Leste (1970). Um filme-ensaio, protótipo da época mais engajada do cinema de Godard. Nele, são discutidos os caminhos possíveis do cinema revolucionário e da alternativa socialista de organização social. Glauber Rocha participa de uma das sequências do filme, encenando a encruzilhada do cinema no então chamado Terceiro Mundo.

História (s) do Cinema é sua ruptura de maturidade. Realizado entre 1988 e 1998, em vídeo, revela a preocupação de Godard não apenas com os rumos do cinema, mas com a própria história da civilização. Nos anos 1960, François Truffaut observa que os 12 primeiros filmes de Godard não contêm a palavra “passado”. Como se o cineasta só olhasse para frente. Em História (s) do Cinema, pelo contrário, o olhar recua para contemplar a densidade da história e, de certa forma, a sua tragédia.

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Como observa seu biógrafo Antoine de Baecque (Godard, Biographie, Grasset, 2010, 940 págs.), essas datas marcam uma encruzilhada tanto pessoal como histórica. Godard chega aos 60 anos e o cinema, como invenção, ao centenário. A história muda bruscamente com o fim do comunismo e da Guerra Fria. O homem de esquerda, o revolucionário que havia antevisto o Maio de 1968 um ano antes, com A Chinesa, vê o capitalismo ganhar a parada. O que virá a seguir? Godard sente que o momento da consciência histórica se impõe. Daí essa obra impressionante, contraditória, barroca e desconcertante, de 4h25 minutos, dividida em oito capítulos. No início de um deles, vê-se na tela a dedicatória – a John Cassavetes e a Glauber Rocha.

Desde então, Godard não deixou de se reinventar, em filmes ensaísticos e sempre ligando o peso histórico à contemporaneidade – tais como Forever Mozart (1996), Elogio do Amor (2001), Nossa Música (2004), Filme Socialismo (2010) até chegar ao extraordinário Adeus à Linguagem, seu experimento em 3D. Essa inquietação estética e política, inalterada num homem então com quase 85 anos, pode não ter contribuído para torná-lo mais popular ao espectador médio, que vai ao cinema em busca de diversão. Mas solidificou sua posição filosófica de quem pensa o cinema usando o próprio cinema como ferramenta de reflexão.

Haveria ainda o perturbador Palavra e Imagem (2019). Palavra e Imagem, tradução de Le Livre d’Image, no original francês.

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É muito esclarecedor, por exemplo, ver que o filme se inicie por uma espécie de “ode às mãos” e não ao pensamento. Contradição apenas aparente, no entanto, pois, como lá se diz, o homem é esse animal capaz de “pensar com as mãos”. É o que faz o pintor (a pintura é “cosa mentale”, dizia Leonardo), o escultor, o arquiteto. Mas também o escritor e, claro, o cineasta. Godard pensa com as mãos - e com os olhos, os ouvidos, o cérebro - ao manipular imagens, sons e pensamentos alheios, alterá-los e colocá-los numa disposição de reflexão geral sobre o mundo, e, nele, sobre as pessoas e as coisas.

Godard justapõe muitas imagens de filmes - inclusive dos seus próprios - a cenas documentais. Muitas cenas de guerra e sofrimento. As Histórias do século 20, e a do 21, são sangrentas. Definitivamente, a civilização não triunfou e o cinema registra esse fracasso.

O “mundo árabe” ocupa um longo lugar de destaque na parte final. Prova de que a velha questão “Oriente e Ocidente” retorna com força, como sabemos todos. “O Oriente é o Oriente e o Ocidente é o Ocidente, e jamais se encontrarão”, escrevia Kipling no apogeu do colonialismo. O que mudou?

Esta é apenas uma das inúmeras questões levantadas por este filme que fala da luta entre civilização e barbárie e encontra na arte um local privilegiado, porém não idealizado. Lembrem da frase do próprio Godard: “a cultura é a norma e a arte é a exceção; é próprio da norma matar a exceção”.

Essa arte, cada vez mais distante de uma narratividade miúda, de suas historinhas com começo, meio e fim, pode às vezes ser um entrave para o espectador, acostumado à linearidade da TV e dos filmes comerciais. Mas sua disposição guerrilheira também pode ser vista de outra forma, como desafio e estímulo. E, afinal, sua fragmentação estética não está tão distante assim da nossa experiência cotidiana. Durante um dia, lemos os jornais, escutamos ou vemos as notícias, lemos um romance e páginas de um livro de ensaios, escrevemos, atendemos ao telefone, respondemos e-mails e zaps, ouvimos música, trabalhamos em tarefas diversas, conversamos com os outros, podemos ver vídeos e um filminho antes de dormir. Nem por isso nosso cérebro entra em colapso, pois dispõe de estruturas para ordenar o caos. O dia pode ter se estilhaçado em mil tarefas distintas. Mas temos a sensação a posteriori de que tudo foi linear e em ordem. Por que ficaríamos então indefesos diante de um filme de Jean-Luc Godard? Basta experimentar qualquer um dos capítulos dessa obra magnífica, para sempre à disposição de quem tenha o cinema como arte de invenção, reflexão e conhecimento do mundo e de si próprio. Tudo isso devemos a Godard.

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