Clássico do Dia: 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' volta-se criticamente para os mitos do cangaço

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como esse, a sensação de Glauber Rocha no Festival de Cannes em 1964

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Glauber Rocha tinha 25 anos quando levou Deus e o Diabo na Terra do Sol à competição de Cannes, em 1964. Foi um ano visceral para o Brasil, que dois anos antes ganhara a Palma de Ouro, a única da história do cinema do País, com O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte. Em francês, o título era La Parole Donnée, A Palavra Empenhada.

Que ano! No Brasil, ocorrera o golpe militar. Na Côte d'Azur, dois filmes, o de Glauber e o de Nelson Pereira dos Santos, Vidas Secas, impuseram internacionalmente o Cinema Novo. A estética da fome. Nelson ganhou o prêmio da crítica – seu primeiro; houve outro, 20 anos depois, por Memórias do Cárcere –, mas o júri oficial, presidido por Fritz Lang e integrado, entre outros, por Geneviève Page e René Clement, preferiu atribuir a Palma de Ouro ao musical en-cantado de Jacques Démy, Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg.

'Deus e o Diabo na Terra do Sol' (1965). Uma das obras-primas de Glauber Rocha e obra referencial do Cinema Novo, conta a saga do vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), que luta contra seu patrão, agrega-se a um grupo religioso, entra no cangaço para, depois de tudo, tomar consciência da exploração social a que é submetido Foto: Copacabana Filmes

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Só para lembrar, Anne Bancroft, por Crescei e Multiplicai-vos, de Jack Clayton, foi a melhor atreiz e Saro Urzi o melhor ator, por Seduzida e Abandonada, de Pietro Germi, ambos os prêmios outorgados ex-aequo. Anne dividiu o dela com Barbara Barrie, de One Potato, Two Potato, de Larry Peerce, e Urzi com Antal Pager, de Pascsirta/Andorinha, de Laszlo Ranodi. O júri ainda deu um prêmio especial, póstumo, ao polonês Andrszej Munk, que morrera durante a filmagem de A Passageira e o filme permaneceu incompleto, sendo as partes que faltavam preenchidas com fotografias. A jovem Catherine Deneuve, loira, linda, cantava Je Vous Attendrai Toujours, mas era mentira. Ela não esperava Nino Castelnuovo, e era o drama no Démy. Sérgio Ricardo também cantava – Te entrega, Corisco! e as imagens em preto e branco, cruas, eram lancinantes. Othon Bastos, como Corisco, rodopiava diante da câmera. Manuel e Rosa, Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães, correm eternamente pelo sertão da memória. Ela cai, ele segue até que entram as imagens do mar, cumprindo a profecia –“O sertão vai virar mar/E o mar virar sertão”.

Na França, Deus o Diabo ganhou o título de Le Dieu Noir et le Diable Blanc. O Deus Negro e o Diabo Branco. Vidas Secas, para constar, era Sécheresse. Glauber era jovem, baiano, arretado. Já se destacara como crítico em Salvador, fizera um primeiro longa, Barravento, com belas imagens, mas um tanto frouxo como dramaturgia. Deus e o Diabo foi um passo adiante, e que passo!

Glauber, bebendo na fonte do cordel, voltou-se criticamente para os mitos do cangaço. Adotou a estrutura bipolar que haveria de prosseguir com Terra em Transe e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, com o qual ganhou, em Cannes, o prêmio de direção, em 1969. (Glauber também receberia o prêmio especial do júri pelo curta documentário Di Cavalcanti, em 1977.) Deus e o Diabo conta a história do vaqueiro Manuel, casado com Rosa. Despossuído da sua pequena propriedade, vive na estrada. Junta-se ao beato Sebastião, o Deus negro, e não encontra resposta para os seus anseios. Entra para o bando de cangaceiros de Corisco, o Diabo branco. Torna-se violento, participa de pilhagens. Corisco é perseguido por Antônio das Mortes, o caçador de cangaceiros interpretado por Maurício do Valle. Manuel também não se identifica com esse universo e inicia a corrida para o mar.

Se o cinema, como arte, abre uma janela para a compreensão do homem, e do mundo, Deus e o Diabo cria cenas que se tornaram emblemáticas na definição de uma identidade brasileira na tela de cinema. Admirador de Sergei M. Eisenstein – e de suas teorias da montagem –, Glauber criou a sua escadaria de Odessa na peregrinação a Monte Santo. Uma cena de amor, e sexo, ao som das Bachianas, de Villa Lobos, ecoa para sempre no imaginário do cinéfilo.

E tem o confronto de Corisco e Antônio das Mortes. “Te entrega!”, 'Eu não me entrego, não, só me entrego na morte, de parabellum na mão”. Na sequência desses versos imortais entra o refrão sobre o sertão virando mar. Glauber morreu em 1981, ainda jovem, aos 42 anos. Deixou sua marca no cinema e na política do Brasil. Adorava polêmicas, deu origem a muitas. Deixou um dilema para seus admiradores. Qual o maior Glauber? Deus e o Diabo na Terra do Sol ou Terra erm Transe? Talvez não seja preciso escolher. São dois clásssicos indiscutíveis da história do cinema brasileiro.

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