Começa o É Tudo Verdade, festival que propõe reflexão sobre o cinema do real

Evento será realizado até o dia 22 em São Paulo e no Rio de Janeiro

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Por Luiz Zanin Oricchio

O maior festival de documentários do País - o É Tudo Verdade - começa refletindo sobre o gênero que abraçou, o cinema do real. Subject, das norte-americanas Jennifer Tiexiera e Camilla Hall, discute nem tanto questões da linguagem documental, mas algumas implicações éticas. Em particular as consequências para a vida de pessoas que se tornaram personagens de documentários famosos como Basquete Blues, Na Captura dos Friedmans, Os Irmãos Lobo, A Escada e A Praça Tahrir. Devem ser pagos pelos depoimentos prestados ou o dinheiro contamina o filme? Os cineastas continuam responsáveis pelos personagens ao longo dos anos ou as partes se separam assim que o trabalho conjunto termina? São questões em aberto e merecem discussão.

Subject é apenas o ponto de partida para o cardápio amplo que, este ano, oferece nada menos de 72 exemplares do cinema documental - em longa, média e curta-metragem. O festival segue em várias salas, em São Paulo e no Rio, até dia 22, quando acontece o anúncio dos vencedores das mostras competitivas, nacional e internacional.


Cena do filme O Caso Padilla, de Pavel Giroud Foto: LowRes

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Nesta 28.ª edição do É Tudo Verdade há de tudo um pouco, e às vezes muito, como em O Caso Padilla, de Pavel Giroud, sobre o affair rumoroso da esquerda latino-americana em 1971, quando o escritor Heberto Padilla, censurado e perseguido pelo regime de Fidel Castro, fez bombástico mea culpa diante de colegas em plena sede da União Cubana dos Escritores, em Havana. Pelo tom enfático em demasia fica claro que a fala de Padilla foi feita sob pressão - ele e a mulher sofreram penas de prisão. O filme traz na íntegra essa “autocrítica”, fato divisor de águas no apoio até então unânime da esquerda internacional ao regime cubano.

Se O Caso Padilla aponta para episódio dos anos da Guerra Fria, Rezando pelo Armageddon, de Tonje Essen Schei, palpita de atualidade ao retratar a crescente influência do extremismo evangélico nos Estados Unidos, com seus crentes aspirando pelo Juízo Final e ocupando posições cada vez mais fortes na estrutura política norte-americana.

Além das atrações internacionais, a presente edição empresta destaque especial para a produção brasileira, este ano bastante vigorosa.

Em Nada sobre meu Pai, a diretora Susanna Lira opera em espaço chamado de “documentário de busca”. Ela viaja para o Equador à procura do pai desconhecido, munida apenas de sua câmera e indícios precários. Sabe que ele manteve relacionamento com a mãe no Rio de Janeiro na época da ditadura, e seria equatoriano pois os companheiros o chamavam de “Quito”. Apenas isso. Eram tempos de luta política clandestina na América Latina e militantes como ele viviam na clandestinidade. Na polícia equatoriana não existem registros do nome usado por ele. A diretora insiste, fala com antigos combatentes, pensa estar próxima de descobrir o paradeiro do homem, mas tudo é incerto, difícil, ambíguo. O tempo apaga muitos rastros e deixa feridas e dúvidas. Procurando, ela descobre a si mesma. E levanta um pouco mais o pano sobre esse período de violência política, responsável por muitos traumas ainda por serem curados, se é que algum dia serão.


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Nada sobre meu Pai, a diretora Susanna Lira Foto: Urbano Filmes


Morcego Negro, de Chaim Litewski e Cleisson Vidal reabre o misterioso caso de Paulo César Farias, o PC Farias, tesoureiro da campanha de Fernando Collor à presidência e homem forte do governo eleito. O caso de PC é enrolado como poucos. Sua atuação nos bastidores maneja milhões de dólares de procedência duvidosa e estende ramificações a diversos países, inclusive, provavelmente, com a Itália e sua onipresente máfia. Processado, preso e depois libertado sob condicional, PC foi encontrado morto ao lado da namorada em sua casa de praia em Maceió. Até hoje há hipóteses diferentes sobre essas mortes. Crime passional seguido de suicídio ou queima de arquivo? A narrativa é trepidante e segue a fórmula do “true crime”, subgênero de sucesso no streaming. Como a história criminal de PC se desenrola nos bastidores do poder, Morcego Negro é, acima de tudo, comentário instrutivo sobre usos e costumes da política brasileira.

No âmbito histórico, o É Tudo Verdade traz uma iguaria - os oito episódios de Histoire(s) du Cinéma, visão particular de Jean-Luc Godard (1930-2022) sobre a arte cinematográfica. Não espere uma história tradicional, com começo, meio e fim. O mais inovador dos cineastas da nouvelle vague também é original ao tratar da história da arte cinematográfica, usando trechos de filmes alheios, em estilo colagem, e mesclando a eles referências da filosofia, literatura e outras artes. É reflexão audiovisual, profunda e livre como um ensaio de Montaigne. A narração é dele mesmo, com sua voz inconfundível.


Em Histoire(s) du Cinéma, a visão particular de Jean-Luc Godard Foto: É Tudo Verdade


No âmbito nacional, o segmento histórico destaca a figura de Humberto Mauro (1897-1983). Considerado pai fundador do cinema brasileiro, Mauro é autor de clássicos de ficção como Lábios sem Beijos e Ganga Bruta. Dedicou-se também ao documentário. A seleção neste campo deve-se à curadoria de Sheila Schvarzman e Eduardo Morettin. O programa compõe-se de dez obras de Mauro e mais duas sobre sua vida e obra.

Algumas dicas:

Santino, de Cao Guimarães. O personagem-título é um dublê de ambientalista e místico descoberto pelo diretor Cao Guimarães. Santino e sua família vivem numa das veredas de Minas Gerais, celebradas por João Guimarães Rosa. O filme é lindo.

171, de Rodrigo Siqueira. Em escolha original, o diretor põe em cena pessoas condenadas no artigo 171 do Código Penal. Gente que usa da esperteza e das boas palavras para enganar as vítimas. São artistas da manipulação da ingenuidade alheia.


Documentário 171, de Rodrigo Siqueira Foto: É Tudo Verdade /Divulgação


1968 - Um Ano na Vida, de Eduardo Escorel. O veterano documentarista revisita 1968, “o ano que nunca acaba”, sob um ângulo original: seguindo o diário da época, escrito por sua irmã, Silvia, que também faz a narração dessa época de política e contracultura, ação revolucionária e desbunde.

O Contato, de Vicente Ferraz. Propõe uma imersão dos personagens da cidade indígena de São Gabriel da Cachoeira, mostrando a diversidade cultura e étnica, ameaçada tanto por religiosos, como por traficantes e garimpeiros.

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Alguns curtas de Humberto Mauro. Vale a pena sentir a autenticidade de obras como Cantos de Trabalho, Carro de Bois e Engenho e Usinas. Na tela, palpita o Brasil profundo, rural, de uma certa época. Para uma visão de conjunto da obra, veja o documentário em longa-metragem Humberto Mauro - Cinema É Cachoeira, de André Di Mauro.

A programação completa do É Tudo Verdade pode ser consultada no site http://www.etudoverdade.com.br/

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