Mary Stuart tem estado no inconsciente coletivo por quase 500 anos. No cinema, inspirou um clássico de John Ford – Mary of Scotland, de 1936 –, do qual Orson Welles retirou ideias sobre a construção do cenário para o seu Cidadão Kane. Inspirou também um novelão de Charles Jarrott – Mary Stuart, Rainha da Escócia, de 1972 –, cujo interesse estava todo no embate entre duas grandes atrizes, Vanessa Redgrave, no papel-título, e Glenda Jackson como sua oponente, Elizabeth I.
Também inspirou peças – de Schiller, filmada por Ford – e incontáveis livros, incluindo o de Stefan Zweig, que acaba de ser reeditado no Brasil pela José Olympio. Zweig fez um estudo fascinante sobre Mary e seu tempo. Encarnação do absolutismo real, ela nunca duvidou da legitimidade de suas ambições. Considerava-se rainha da Escócia e da Inglaterra, sendo a bastarda Elizabeth uma usurpadora do seu trono.
O conflito entre as duas foi alimentado pela disputa religiosa. Mary, católica, Elizabeth, protestante anglicana. No limite, Elizabeth mandou executar a rival, mas, por ter morrido sem descendência, foi sucedida por Jaime I, o filho de Mary e hoje as duas repousam lado a lado como rainhas na abadia de Westminster.
Ao mandar matar a rival, Elizabeth abriu um precedente. Reis eram vitalícios e gozavam do direito divino de não prestar contas de seus atos. Ao matar a rainha, sua igual – Mary considerava-se superior –, ela permitiu que dois séculos depois a Revolução Francesa promovesse aquele banho de sangue. Tudo isso é história, com maiúscula, que Zweig analisa com propriedade e estilo. Às vezes a gente até esquece quão grande escritor ele foi. O problema talvez seja um certo machismo no olhar do autor. Já o filme está mais para o novelão de Jarrott do que para a ousadia de Ford, que centra seu relato no julgamento viciado de Mary. Josie Rourke é a diretora.
De cara, Mary, interpretada por Saoirse Ronan, é retirada de sua cela e levada para o cadafalso. As aias arrancam seu vestido e por baixo ela usa um camisolão vermelho-sangue. Foi assim na realidade. A cor realça a dramaticidade, e mais – o martírio que Mary sofreu por ser cristã.
Josie Rourke é uma prestigiada diretora inglesa de teatro. Tem flertado com o cinema. Suas encenações foram filmadas e apresentadas como telefilmes na TV da Inglaterra – Coriolano, com Tom Hiddleston; Ligações Perigosas, com Janet McTeer e Dominic West. Duas Rainhas é sua primeira direção para cinema. O filme beneficia-se enormemente de seu elenco – de suas atrizes.
No Oscar do ano passado, Saoirse e Margot Robbie, que faz Elizabeth (com um nariz falso) concorreram a melhor atriz por dois dramas de ambientação contemporânea, Lady Bird – A Hora de Voar e Eu, Tonya. Ambas estão muito bem no drama histórico que Josie adaptou do livro de Beau Willimon.
Mary, que foi rainha consorte da França, desembarca na Escócia e se coloca sob a proteção do meio-irmão, que terá sempre uma atitude ambivalente com ela. Alia-se a Elizabeth, quer o lugar dela. O filme mostra o jogo de poder entre as rainhas – Elizabeth impõe seu amante a Mary, desiste, força-a a se casar com Henry Darnley, que é bissexual e vai para a cama com o artista protegido da rainha da Escócia. O filme tem sexo, romance, traição, todo tipo de intriga palaciana. É um novelão. Sério, mas nem tanto. Bem-feito, mas não muito. Bem interpretado – isso sim.