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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|A madrugada dos celulares - os aparelhos afundavam e os peixinhos à espreita

Dominada a tecnologia, se desviavam dos perigos, armadilhas, namoravam, marcavam encontros nos corais. E esqueceram de aprender o que era essencial para viver naquela imensidão.

Foto do author Ignácio de Loyola Brandão

Para Marcia Gulllo

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Todos souberam da balbúrdia submarina, em Angra dos Reis, mas acharam que era pré-carnaval. Os peixes graúdos convocavam baleias experientes como Moby Dick para tentar esclarecer. Por que os peixes menores passaram a não ir às aulas de natação, autoproteção, aprender a respiração, procurar a própria comida, estratégias de fuga ante ameaças? Eles alegavam: “Para que aprender coisas antiquadas se estamos em rede, nos comunicando, nos protegendo?”.

Tudo o que os peixinhos queriam era gozar a vida, surfar, transar nas grutas de coral, saber evitar as redes predatórias e até ficar na areia, ao sol, como os humanos. Apenas sentiam falta das caixas de som.

Pessoas segurando celulares em foto de fevereiro de 2020 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Perplexos, os mais velhos perguntavam: “Qual é?”. E ouviam: “Temos celulares”. Nascia a primeira consciência de liberdade para os peixinhos, principalmente as sardinhas, que sabem que acabarão em latas. Quem também temia eram as anchovas, apavoradas com a possibilidade de terminar na cobertura de pizzas. E o que dizer das lulas e dos polvos? Não há chef que não invente com ambos em receitas de alta culinária, em pratos de muitos reais.

Até então os pequenos peixes eram obedientes às leis clássicas. Mas naquela madrugada, pelas cinco da manhã, perceberam que estavam entrando no mar objetos iluminados. Passada a estupefação, apanharam e viram que eram celulares. Para que serviam? Um peixe espertalhão viu números, instintivamente digitou, ouviu, informou: “Voz de humano”. Discou outro número, uma voz atendeu, alguém tinha tido a mesma ideia, falaram na língua dos peixes. Encantados, descobriram que estavam diante de uma doação magnífica de Netuno e, sendo democratas, começaram a distribuição. Rápidos, aprenderam como enviar mensagens, entrar no WhatsApp, fazer selfies e se comunicar em rede.

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Dominada a tecnologia, se desviavam dos perigos, armadilhas, namoravam, marcavam encontros nos corais. E esqueceram de aprender o que era essencial para viver naquela imensidão. Queriam flanar, nadar, ser célebres, influencers, fazer harmonização facial. Peixes malandros roubavam celulares dos desavisados.

Enquanto isso, na superfície do mar, nas madrugadas, passou a ser intenso o congestionamento de iates bilionários, jet skis, lanchas, trazendo ex-presidentes, ministros, senadores, deputados, empresários, influencers, chefes de gabinete, presidentes de tribunais, consultores de mercado financeiro, banqueiros, policiais, celebridades instantâneas no limite da decadência jogando ao mar celulares caríssimos como o Magic 8 Pro+, o Caviar Falcon Gold e até alguns Caviar Snowflake (orçados em milhões). Os aparelhos afundavam e os peixinhos à espreita.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão

É escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de 'Zero' e 'Não Verás País Nenhum'

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