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Íntegra da entrevista de Paul Auster ao 'Estado'

"Olá, eu já aguardava a sua chamada." A voz áspera, que denuncia o hábito de fumar cigarrilhas, é de Paul Auster, o mais celebrado romancista americano de exportação. Como acontece com Woody Allen, que é tratado como heroi na França ou na Itália, a numerosa produção de Auster tem bolsões de admiração nos Estados Unidos mas nada se compara ao seu sucesso crítico internacional. O autor da Trilogia de Nova York comemora os 30 anos da estréia literária como memorialista em A Invenção da Solidão com um novo volume de memórias, Winter Journal, que sai em agosto nos Estados Unidos. Está escrevendo um "possível" novo romance e já tem pronto, para lançamento em março de 2013, um volume de correspondência com o romancista sul-africano J.M. Coetzee. " A ideia foi dele," explica Auster. "Vamos fazer um livro juntos," e os dois se corresponderam sobre vários assuntos durante três anos.

Por Lúcia Guimarães e NOVA YORK
Atualização:

 

O novo romance de Auster, Sunset Park, se passa no território familiar do Brooklyn, cuja densidade demográfica literária levou outro morador, o romancista Jonatham Lethem (Brooklyn Sem Pai e Mãe) a denunciar o bairro como "canceroso de romancistas" e prejudicial ao "tráfego mental." Deste engarrafamento não sofre Paul Auster, que mora num elegante brownstone próximo ao Prospect Park, uma área muito mais nobre do que o bairro que dá titulo ao novo romance. Sunset Park, trata da crise de moradia provocada pelo crash de 2008. Como é comum na ficção de Auster, o acaso catapulta a trama que atravessa três gerações. Um grupo de jovens ocupa ilegalmente uma casa abandonada em Sunset Park, de frente para o enorme cemitério Green-Wood, onde convivem os restos de John Steinbeck, Woody Guthrie e Frank Morgan, o ator que viveu no cinema, Mágico de Oz. A história examina a evolução do caráter americano do pós-guerra, a decadência da indústria de livros e uma preocupação crescente do autor, que acaba de completar 65 anos: "Como eles se tornaram tão velhos?", pergunta o personagem Morris Heller. "Como aquele menino ficou tão velho?," pergunta, em viva voz, Paul Auster, confirmando que a mortalidade ocupa seus pensamentos.

 

O seu livro saiu primeiro em edição eletrônica, a impressa só sai no começo de maio. O senhor tem um e-reader?

 

Eu não sabia disso! Você sabe por que? Vou perguntar à editora. Eu não só não tenho um ereader como não tenho computador nem celular. Ainda escrevo à mão e depois passo para a mesma máquina de escrever.

 

O que acha de Sunset Park estrear como e-book?

 

Não há dúvida de que este formato está se espalhando. Mas pensei que as pessoas usassem o e-reader para ler ficção ligeira, como suspense e novelas do gênero romance, não um livro como esse.

 

Seu apego à a mesma máquina de escrever Olympia, em quase 40 anos, se reflete no Hospital Para As Coisas Quebradas do personagem Bing Nathan?

 

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A gente sente nostalgia pelas coisas que estão desaparecendo da vida contemporânea. Quando eu era criança a família só tinha um aparelho de telefone, a torradeira durava 25 anos. O Bing é um nostálgico que se volta contra o status quo dos pertences descartáveis.

 

O personagem Morris Heller fala em seu nome quando diz, "escritores nunca deviam falar com jornalistas. A entrevista é uma forma literária degradada que não serve para nada a não ser simplificar o que não deveria nunca ser simplificado"?

 

Eu posso ver que você é uma pessoa bacana, mas aqui nós só vamos ter uma conversa superficial. Com revistas e jornais, tudo é descartável. Eu dou entrevistas para demonstrar boa vontade com os meus editores. Afinal, está tão difícil vender livros. Dar as costas completamente seria falta de educação. Mas não dá para ficar dando entrevista o tempo todo. Eu tento ser econômico.

 

O mesmo editor Morris Heller encontra seu mais antigo autor e contempla o envelhecimento e a mortalidade. São temas que o preocupam mais agora?

 

Eu fiz 65 anos em fevereiro. Nos Estados Unidos, sou oficialmente um cidadão que entrou na velhice. É um choque. O avanço dos anos começa a tomar conta de você. Tanta gente importante para mim tem morrido, eu me sinto cercado de fantasmas. Acho que falo com fantasmas tanto quanto falo com os vivos. Você se pergunta: como aquele menino ficou tão velho?

 

O Brooklyn é um personagem de Sunset Park. O senhor comentou sobre a importância de locais onde estranhos se encontram num bairro.

 

Eles tornam a vida na cidade mais suportável e menos solitária. Mas sei que é diferente de São Paulo. Aquela cidade é gigantesca. Não me lembro quando estive lá (em 2004, lembro) mas minha mulher Siri e eu tomamos o avião de volta para Nova York e houve uma pane. Levaram todos os passageiros para um hotel perto de uma estrada. Quando acordei de manhã vi a linha dos arranha-céus de São Paulo, sob uma nuvem esverdeada. Achei que estava no filme Alphaville do Godard, já não estava mais neste planeta.

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Por que o filme Os Melhores Anos de Nossas Vidas, de 1946, sobre três soldados que voltam para casa depois de lutar na Segunda Guerra, aparece em vários momentos da trama?

 

É um pouco um fio condutor. O filme é um dos melhores já produzidos em Hollywood. Um filme comercial, claro, mas muito importante para os Estados Unidos naquele tempo. É como um épico nacional americano. Mostrava que teríamos que lidar com a enorme população de jovens feridos que retornavam. Eu fico voltando ao filme porque Sunset Park é uma história de três gerações. Os jovens de vinte e poucos aos, seus pais, e seus avós, já mortos, a geração que viveu a Grande Depressão.

 

Ao se lembrar dos avós, a jovem personagem Alice Bergstrom nota a incoerência de sua geração, "que ainda não tem muito o que contar", ter produzido homens que não param de falar. A loquacidade dos jovens incomoda o senhor?

 

A geração do meu pai foi notoriamente silenciosa. Eles não se queixavam. Não aponto isto como uma virtude e este silêncio afastou muitos pais de filhos. É certo que muito mudou. Mas me irrita, às vezes ficar ouvindo a falação incessante de jovens com tão pouca história de vida.

 

Escritores de gerações diferentes, como Philip Roth e Gary Shteyngart, disseram a este jornal que o romance está se tornando uma arte irrelevante.

 

Eu já tive esta conversa com o Philip até em público e discordo dele. Eu acho que o romance ainda é importante para o público leitor. Como arte, ele proporciona algo que não temos em nenhuma forma - uma intimidade com o outro. Cada romance é escrito por duas pessoas, o autor e o leitor, eles produzem a obra juntos. Ele coloca dois estranhos em absoluta intimidade. E isto nos remete ao que significa ser humano. Ainda que, em números, o público seja menor, para nós, que ainda queremos ler romances, ele continua muito relevante.

 

O senhor apoiou publicamente a candidatura de Barack Obama em 2008. Como vê a campanha presidencial este ano?

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As primárias republicanas foram uma farsa. Alguém comparou, com razão, o espetáculo dos candidatos a um pelotão de fuzilamento em círculo. Os candidatos estão insanamente fora de contato com a realidade que vivemos. A grande máquina de propaganda da direita faz absurdos parecerem ideias plausíveis. Veja a Suprema Corte, é possível que derrube a lei do seguro saúde. Estamos vivendo um retrocesso neste país. Mas eu não vou embora. Meu lugar é aqui.

 

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Trecho de Sunset Park

 

"Já faz quase um ano que ele tira fotografias de coisas abandonadas. No mínimo, tem duas tarefas a cumprir todos os dias, às vezes elas chegam a seis ou sete, e, toda vez que ele e seu séquito entram numa casa, confrontam-se com as coisas, as inumeráveis coisas rejeitadas, deixadas para trás pelas famílias que se foram. As pessoas ausentes partiram às pressas, todas elas, envergonhadas, confusas, e é certo que, onde quer que estejam morando agora (caso tenham encontrado um lugar para morar e não estejam acampadas no meio da rua), suas novas moradias são menores do que as casas que perderam."

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