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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | A lição de Hipólito: quem nada necessita precisaria de companhia?

Como equilibrar a autonomia nas relações? Tragédia grega faz refletir sobre o tema

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Foto do author Leandro Karnal

Hipólito é filho do rei Teseu. O pai mata o Minotauro e torna-se um herói bem-sucedido. A mãe? Nada menos do que a rainha das Amazonas. Logo, seu avô materno é o deus da guerra, Ares. Com deuses e reis na genealogia, nada mais coerente do que Hipólito ser um rapaz de grande beleza.

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O jovem tem uma característica pouco comum no mundo grego. Ele é desinteressado por envolvimentos amorosos ou sexuais. Não busca homens ou mulheres. Dedica-se ao culto da deusa virgem: Ártemis (ou Diana para os romanos). A imortal caçadora adora seu fiel Hipólito. Porém, rejeitar o amor ofende Afrodite. Um mortal livre das paixões eróticas é alguém que diminui o reino da entidade do amor, nascida nas espumas do mar (aphrós, em grego, é espuma). A ira da bela deusa é terrível.

Para se vingar da indiferença ao seu domínio, Afrodite lança encantamento poderoso sobre a madrasta de Hipólito. A rainha Fedra é tomada de um furor pelo enteado como nunca se havia visto. A resposta do rapaz? Frieza. Magoada mortalmente, Fedra inventa ao marido Teseu que o jovem tentara tomá-la à força. Atendendo a um pedido de Teseu, segundo uma fonte, um monstro marinho assusta a biga do rapaz devoto de Ártemis; os cavalos arrastam-no até matá-lo. Ironia suprema: o nome Hipólito significa “destruído por cavalos”. Em algumas versões, Ártemis pede ao grande médico Esculápio que ressuscite seu querido e transporta-o para a Itália, longe dos dramas helênicos.

Quadro 'A Morte de Hipólito' (1860), de Sir Lawrence Alma Tadema Foto: Domínio público

Hipólito tornou-se tragédia de Eurípedes, vencedora do prêmio máximo em Atenas, em 428 a.C. O jovem, alheio ao amor, também serviu de fonte para uma ópera de Rameau (Hippolyte et Aricie), com o papel cantado por um castrato ou, mais modernamente, uma voz muito aguda.

Fedra foi tratada em obra clássica de Sêneca e em peça do século 17 (de Racine). Na obra francesa, a rainha confessa ao marido Teseu que tudo era calúnia, quando Hipólito já estava morto: “São caros os instantes; escutai-me. Fui eu quem, sobre um filho casto e humilde, lancei vista profana, incestuosa. Pôs em meu seio o céu chama funesta”.

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As personagens continuaram inspirando poemas e óperas no século 19. Meu quadro preferido sobre o tema é uma densa cena de dor feita por um francês (Alexandre Cabanel). Chama-se Phédre (1880) e pode ser visto no Museu Fabre, em Montpelier, no sul da França.

Existe um “complexo de Fedra” que remete à atração da madrasta pelo enteado. A rainha teria se matado por não conseguir o amor do filho do marido. Paixões gregas que a mente de Nelson Rodrigues, por vezes, aproximou da família brasileira. Pais que agridem filhos inocentes são tema recorrente. É o caso de Shiva e de Ganesha, no hinduísmo. Também, de alguma forma, a doce Cordélia, no Rei Lear, de Shakespeare. Ser bom em um mundo mau é armadilha advertida por Maquiavel.

O drama central de Hipólito é a autonomia. Não quer amar. Despreza o sexo. Está feliz no culto à sua deusa casta. É príncipe, lindo, forte, rico e... não busca outras pessoas. Isso irrita humanos e deuses. Não conhece crises, dores de cotovelo, depressões amorosas. Está sempre bem na sua solitude.

Um amigo que vem chorar suas mágoas amorosas reconhece sua fragilidade, seu engano. Pediu dinheiro? Você pode emprestar ou não, mas existe ali um ato simbólico: você tem mais do que ele. A falta nos aproxima. A doença mostra que ninguém é imortal. O “chifre” alheio escancara o dedo podre das nossas escolhas afetivas. A alegria maior das ovelhas, pensava o azedo Schopenhauer, é ver que o lobo pegou a ovelha do lado. Ouvir desgraça dos outros é, por um instante, sentir-se poupado dela.

Somos solidários na tragédia, emocionados no câncer, afetivos eventuais com os que tropeçam. Buscados para apoiar, emprestar, curar ou apenas ouvir, estamos momentaneamente superiores neste “vale de lágrimas”. Após um show, tive de carregar um conhecido embriagado. Naquele espaço, eu era forte o suficiente para levá-lo apoiado em mim, sóbrio para caminhar por dois, sábio para enxergar meu próprio limite ao álcool e sentia a virtude vencendo o vício. A vaidade dos “bons” é sempre grande.

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Hipólito não bebe, não fuma, nunca precisa de dinheiro, não namora, não cai em tentações. O príncipe torna-se insuportável na sua autonomia que jamais oferece chance à fraqueza de encontrar amparo em alguém mais problemático. Seria chamado de “arrogante” nas mídias sociais, porque nada publica, jamais pede, nunca se mostra com uma sombra de falha. Só pode ser morto pelo vício de uma madrasta descontrolada, um pai ciumento e um monstro de fora da história. Está tão acima do humano que será destroçado pela fúria de cavalos. A vaidade da virtude é superior à do fariseu que finge uma vida exemplar e está podre por dentro. A de Hipólito é ainda mais grave: ele é, de fato, virtuoso externa e internamente.

Todos temos um amigo que se parece com um fauno, tarado e bêbado. Ele é divertdo, inconveniente por vezes, porém nunca desafia nosso orgulho. Suportaríamos uma amizade com Hipólito? Aliás, o príncipe perfeito teria algum amigo? Quem de nada necessita precisaria de companhia? Como equilibrar a falta e a autonomia nas relações? Você tem alguma esperança?

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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