Opinião | Affonso Romano de Sant’Anna, que deixa legado de paixão e coragem, não temia desagradar

Crítico e poeta morto pouco mais de um mês depois de Marina Colasanti, sua companheira de vida e literatura, não recuava frente uma polêmica e dizia que ‘o autoritarismo estético e o ideológico são siameses’

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Por Mariana Ianelli
Atualização:

Vão-se os bons e seu legado é tarefa de quem fica. A partida de Affonso Romano de Sant’Anna, pouco mais de um mês depois da morte de Marina Colasanti, sua companheira de vida e literatura, nos deixa essa tarefa em dose dupla, e não apenas isso: também a comoção de ver esse famoso casal das letras tornar-se história de uma era e uma estirpe que vão se finando. Uma era e uma estirpe de intelectuais, de ampla atuação no campo da literatura, bem como de amplas conexões entre as artes e as ciências humanas e sociais.

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Das páginas dos jornais às mesas de congresso, da poesia ao ensaio, Affonso Romano exercia nesse ofício uma incansável abordagem crítica de sua época, que na virada para o século 21 se reapresenta, também sob seu olhar questionador, numa corajosa revisão de valores.

Ao lado de Ferreira Gullar, participou das vanguardas da segunda metade do século 20 e refletiu sobre elas. Escreveu sobre arte buscando repensar o próprio instrumental da crítica. Não recuava frente a uma polêmica nem temia desagradar com seus artigos certos grupos do meio artístico e literário. Não temia, por exemplo, questionar Duchamp ou Haroldo de Campos, reavaliar Picasso ou Ezra Pound, e assim reler a história da arte e das letras desde a perspectiva de um novo século, com outros novos olhos, dentro da crítica da cultura.

Affonso Romano de Sant'Anna e Marina Colasanti, companheiros de vida e literatura Foto: @affonsoromanodesantanna via Instagram

Sem rodeios afirmava que “o autoritarismo estético e o ideológico são siameses”. Foi professor e também enquanto intelectual se considerava um “pedagogo”, com todas as implicações éticas desse papel, visão que se aproxima daquela defendida por Mário Faustino em sua poética: a de que, entre os papéis fundamentais da literatura que contribuem para uma transformação social, está o pedagógico.

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Na crítica literária, ainda quando jovem professor na década de 1970, não deixou passar a oportunidade de uma interlocução crítica com Antonio Candido, num diálogo aberto ao público leitor “entre o Mestre e o aluno”. Também por essa época, deu coloração brasileira à “teoria da carnavalização” numa leitura de Jorge Amado. Anos mais tarde (década de 1990), não poupou o verbo ao tratar da omissão do nome de Adalgisa Nery nas “histórias da literatura brasileira”.

Estão aqui exemplos de um intelectual que se colocava corajosamente ao pensar sua época e a discutir sobre ética e estética nas artes plásticas e nas letras, valorizando saudáveis questionamentos e controversas reavaliações. Como intelectual que era, sentia-se convocado a esse exercício sempre.

Se para o crítico Affonso Romano a escritora Marina Colasanti era “a mais completa da literatura brasileira”, cobrindo todos os gêneros, ele, por sua vez, nos domínios da poesia e da crítica, teve uma atuação que também se ramifica com amplitude admirável, do meio universitário às páginas de jornal (a partir de 1984, no Jornal do Brasil, assinava como cronista no espaço antes ocupado por Carlos Drummond de Andrade), sem esquecer suas ações de incentivo à leitura nos anos em que presidiu a Fundação Biblioteca Nacional (entre 1990 e 1996).

Affonso Romano de Sant'Anna em 1996; poeta morreu nesta terça, 4, aos 87 anos Foto: Agilberto Lima/Estadão

Com essa dupla partida, neste ano de 2025, ambos aos 87 anos de idade, fica um vasto legado a ser recolocado para novas gerações de escritores, poetas, artistas e críticos, e a tarefa de voltar a essas obras e à memória viva desses autores guarda excelentes lições de sensibilidade e imaginação, engajamento e dúvida, considerando que tanto a ficção quanto a poesia preexistem aos termos adotados pela crítica em quaisquer tempos. Legado de uma era e uma estirpe de intelectuais a quem não faltavam nem paixão nem coragem.

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Opinião por Mariana Ianelli

É poeta, cronista e crítica literária

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