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Opinião|No embalo da dor-de-cotovelo, Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
 

 

Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor, de Alfredo Manevy, passou na Mostra de São Paulo e em vários festivais. Abaixo, a crítica que escrevi sobre o filme quando o vi pela primeira vez.

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A certa altura do filme, discute-se se o rei da dor-de-cotovelo, Lupicínio Rodrigues, poderia ser hoje "cancelado" em razão de suas letras consideradas machistas. Sem dúvida, desde que se ignorasse o tempo em que viveu e seu respectivo contexto histórico. Ou seja, colocado em prática o procedimento do anacronismo (julgar tempos passados pelos valores do presente), seria bem possível que o velho Lupi fosse mesmo colocado no índex e no pelourinho das redes sociais. Por sorte, existe sempre a possibilidade da contextualização, o que permite "salvar" uma das grandes obras da música popular brasileira, apesar de alguns versos impossíveis de serem escritos hoje em dia. A passagem faz parte do excelente documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor, de Alfredo Manevy, com pesquisa de Lucas Nobile. 

Cito esse trecho porque me parece resumir o projeto em seu todo, um documentário de ideias, pensado com atenção no trabalho do artista, mas também no quadro histórico em que ele se dá, com sua originalidade e também suas limitações. Esse pensamento por trás do filme em nada retira o que ele tem de melhor, a emoção de reencontrar um compositor ímpar da nossa mais significativa manifestação artística, a música popular. 

Gaúcho de Porto Alegre, Lupicínio cresceu em bairro pobre, porém muito criativo e musical. Foi influenciado tanto pelo samba como pelo tango da vizinha Argentina. Expressou-se em diversos ritmos, e ficou mesmo famoso como o grande vate da dor de cotovelo, dos males de amor incuráveis e severos. No entanto, foi um samba, bastante ritmado, que o lançou em escala nacional, Se Acaso Você Chegasse, na voz de Cyro Monteiro e depois na de Elza Soares. O curioso é que a canção foi usada, sem crédito, num filme americano, Dançarina Loura, que chegou a concorrer ao Oscar em 1945. Claro, Lupi nem foi consultado sobre a utilização da obra e nem viu a cor de um centavo. Mesmo assim, quando soube, comemorou que uma composição sua tenha chegado a Hollywood, mesmo sob a forma de uma apropriação indébita. 

Em seu cantinho porto-alegrense e depois no Rio de Janeiro, Lupicínio nem se importava muito com Hollywood e suas badalações. Foi um boêmio clássico, daqueles de virar noites seguidas em mesas de um bar. Dos então meninos da tropicália, que o adoravam, Caetano Veloso e Gilberto Gil, dizia que eram frouxos e não conseguiam acompanhá-lo nas maratonas noturnas. "Meia-noite e já estão cansados, ou têm algum compromisso para o dia seguinte. Eu vou até as 9 ou 10h da manhã seguinte". Era representante da velha boemia dos anos 1940 e 1950, do culto ao copo, aos companheiros de bar, à mulher amada, em geral esquiva e traidora. 

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O contexto é também o que traz Lupicínio para dentro da realidade brasileira, discriminado em um restaurante por ser negro. Não quiseram servi-lo e o caso foi parar numa delegacia. "Não sabia que Lupicínio Rodrigues era negro", excusou-se o dono do estabelecimento. Foi também o que levou Lupicínio a ser autor do hino do Grêmio, primeiro clube gaúcho a admitir jogadores negros em seu time. Também é ele, o contexto histórico, que torna tão difícil estabelecer a genealogia desse descendente de pessoas escravizadas, como se vê numa reunião com os descendentes. Tudo isso está no filme. Alguns críticos não gostam dessa reunião familiar. Acho que não atrapalha, pelo menos. 

O cerne do documentário é mesmo a grandeza do compositor e do intérprete. Em especial, do intérprete de si mesmo, talvez o ideal (embora o LP de Jamelão, com canções suas, seja uma obra-prima). Com voz pequena, afinada e serena, acompanhado de um sóbrio conjunto, Lupi interpreta como ninguém seu repertório. Esta versão está num disco despretensioso, segundo ele gravado apenas para apresentar suas composições a possíveis intérpretes e que se transformou numa joia de despojamento e simplicidade. Ele próprio dizia se inspirar em Mário Reis, o pioneiro desse canto próximo da fala que seria a característica do estilo bossa-novista. 

Aliás, a bossa-nova foi esse divisor de águas que, por paradoxo, deixou Lupicínio sem lugar na música popular brasileira. Sua música passou a ser vista como coisa antiga, com seus versos desmedidos, uma velharia já sem lugar num país que aspirava à modernidade, e adotava "novo" como adjetivo obsessivo - nova capital, bossa nova, cinema novo, etc. 

Já nos anos 1960, Augusto de Campos, detectava que Lupicínio ficara sem lugar no mundo da cultura musical brasileira. Aproximando-o a Nelson Rodrigues, o poeta e ensaísta escreve:  "Lupicínio se dedicou, afincadamente, por toda a vida, a virar pelo avesso a dor-de-cotovelo amorosa. E assim como Shakespeare formulou em termos arquetípicos o sentimento do ciúme em Otelo, Lupicínio - o criador da dor-de-cotovelo, na definição eufemística de Blota Jr. - com menos armas, ou se quiserem até praticamente desarmado, só com a força da sua verdade e do 'pensamento bruto' consegue formular como ninguém aquilo que se poderia chamar, parodiando a requintada terminologia sartriana, de sentimento da 'cornitude'. (Balanço da Bossa, p. 222). 

Bingo. Melhor que isso, só vendo o filme. E ouvindo Lupicínio Rodrigues, cantor maior dos males de amor nesse país fraturado chamado Brasil. 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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