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Bebel Gilberto: o que está por trás das bandeiras pisoteadas e ostentadas nos palcos

De Cazuza a Caetano Veloso, de Paul McCartney ao Lynyrd Skynyrd, uma bandeira nunca é só uma bandeira quando ela está nas mãos de um artista

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Ao sambar sobre a bandeira do Brasil em show no final de semana, Bebel Gilberto sentiu logo que havia pisado na bandeira e na bola por ter presenteado, como disse ela mesma, uma “extrema direita louca para destilar seu falso patriotismo”. Se arrependeu, pediu sinceras desculpas e nem ensaiou uma discussão semiótica, cabível mas muito cabeça para as urgências das redes sociais (e talvez para a própria Bebel), a respeito dos símbolos ressignificados pelo tempo e pelo contexto. Uma mesma bandeira do Brasil empunhada em um estádio de futebol encerra ideias distintas de uma bandeira usada como vestimenta em manifestações na Avenida Paulista. A primeira exprime devoção a um time de futebol, independentemente do grau de sentimento patriótico de um torcedor que pode nem saber cantar o Hino Nacional mas que sairá às lágrimas se o seu time perder. A segunda, o pertencimento a um grupo político. Ao rejeitar o símbolo em espaço aberto, Bebel não profanava a bandeira em si, inquestionavelmente soberana, mas a ideia que lhe trazia. 

Bebel Gilberto em 2020 Foto: Luigi & Lango

Há tempos que artistas e bandeiras alimentam uma relação pública de amor e de ódio. Amor ou ódio não às cores ou formas desenhadas pelo filósofo e matemático Raimundo Teixeira Mendes logo após a Proclamação da República, em 1889, vale dizer cem vezes, mas às sensações que elas exprimem e que se transformam a cada revés histórico. Em 18 de outubro de 1988, já fervendo em febre pela Aids e em rebeldia por entender que o Brasil de José Sarney não parecia mudar muito, Cazuza causou ao cuspir na bandeira do Brasil durante um show da turnê de seu álbum Ideologia, dirigido por Ney Matogrosso. Ainda não havia associação direta da bandeira com campos políticos definidos, mas sim com uma ideia geral de País. Houve gritaria entre intelectuais e na própria classe artística, com o jornalista Humberto Saad reforçando que a Nação não deveria admitir tal ofensa. Cazuza escreveu sua resposta em uma carta e pediu ao pai, João Araújo, que a entregasse à imprensa, mas João resolveu poupar o filho doente e a guardou. Semanas depois da morte de Cazuza, em 1990, João levou a carta ao Globo. 

Cazuza em 1988: cuspida na bandeira Foto: Arquivo pessoal

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Cazuza escreveu: “Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB (Jornal do Brasil) de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música Brasil no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da plateia.” Mais à frente, seguia: “Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnã, queimavam a bandeira de um país onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo ‘simples fato de ter escondido alguma coisa do povo. Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados? Que a África do Sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinquenta milhões de pessoas vivem à margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos?”

E finalizava: “Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock’n’Rio (em 1985) junto com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar. A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando”.

Anos antes da reabertura política vivida por Cazuza, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos em 1968, 14 dias depois de o AI-5 entrar em vigor. Vigorava a Lei de Segurança Nacional com todos os dispositivos garantindo ao regime encarcerar quem quer que blasfemasse não apenas contra a bandeira, mas também com relação ao Hino Nacional. Aliás, vale um parênteses: pela lei de então, aqueles que cuspiam ou pisassem em uma bandeira deveriam ter o mesmo destino dos que a usassem como manto sobre as roupas em manifestações públicas. “Artigo 31: São consideradas manifestações de desrespeito à Bandeira Nacional, e portanto proibidas: usá-la como roupagem, reposteiro, pano de boca, guarnição de mesa, revestimento de tribuna, ou como cobertura de placas, retratos, painéis ou monumentos.”

Caetano e Gil já criavam muito incômodo ao regime até ali, e encarcerá-los era uma questão de tempo e de álibi. Depois de já saber por meio de uma denúncia de que eles faziam com os Mutantes um show na Boate Sucata, no Rio, usando uma imagem do artista plástico Hélio Oiticica que dizia “seja marginal, seja herói”, os militares afirmaram que haviam sido informados também de que eles haviam profanado o Hino Nacional em público, algo nunca confirmado pelos artistas. O álibi passou a existir e a história que segue é daquelas tragédias surgidas por detrás dos pretensos patriotismos: Caetano e Gil são presos em São Paulo, levados de camburão por cinco horas até o Rio e encarcerados por um mês em celas sem higiene e de dieta à base de pão. Em janeiro de 1969, seguem para quartéis separados e, finalmente, ficam sabendo da razão da prisão: desrespeito a dois símbolos nacionais. Seguem para a prisão domiciliar mas são proibidos de aparecer na mídia, participar de atos, fazerem shows e declarações públicas, e são pressionados a deixar o país. Seguem para Londres naquele 1969 para só voltar a morar no Brasil em 1972.

Outras bandeiras, ou as ideias que elas trazem, podem se tornar problemas justamente por serem ostentadas. Algumas bandas de rock and roll surgidas no Sul dos Estados Unidos, chamadas de soulthern rock, ainda usam como símbolo uma imagem de fundo vermelho com duas faixas trançadas e cravadas de estrelas brancas que os norte-americanos chamam de Dixie Flag e o mundo de A Bandeira dos Confederados. Um caso clássico de duas significações pode explicar um choque cultural semiótico dos mais duradouros na história do rock. Enquanto os integrantes sobreviventes do Lynyrd Skynyrd, assim como os Allman Brothers e várias outras bandas faziam, dizem que a usam por orgulho à terra em que nasceram, boa parte do planeta sente ojeriza da mesma imagem por tudo o que ela representa à parte do patriotismo sulista. Os confederados queriam se separar dos Estados Unidos para, resumindo, seguirem sendo escravagistas. Após o fim da Guerra da Secessão, entre 1861 e 1865, que por sinal perderam, a mesma bandeira passou a ser usada pelo grupo criminoso e supremacista branco Ku Klux Klan.

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A banda Lyunyrd Skynyrd e, ao fundo,a Bandeira dos Confederados Foto: LSP

O curioso é que tal bandeira ainda é hasteada ao fundo do palco de shows de pequenas e grandes bandas de rockabilly e usada pelo pessoal que anda de moto custom, ao estilo Harley Davidson, sem necessariamente que seus condutores saibam do legado de ódio que carregam em suas estrelas. Mas a ignorância pode custar caro. O grande Tom Petty, roqueiro morto em 2017 que não nasceu no Sul mas que o tinha como referência musical, usou a Dixie Flag como divulgação de seu álbum de 1985 sem saber, disse ele, do que ela significava. “Usei isso no palco durante aquela canção e me arrependi bem rápido. Quando saímos em turnê, dois anos depois, percebi que as pessoas na plateia usavam a bandeira como bandana e coisas do tipo. Uma noite, alguém jogou uma delas no palco. Parei tudo e fiz um discurso sobre o assunto. ‘Eu preferiria que ninguém jamais trouxesse a bandeira confederada para os nossos shows de novo’, disse à plateia”. A mancha nunca foi apagada de sua história.

Onde quer que esteja, Paul McCartney, um amante de bandeiras, volta para fazer todos os bis de suas turnês empunhando a flâmula do país em que está se apresentando. Só recentemente, ao abrir a turnê de retorno pós Covid nos Estados Unidos, voltou com a bandeira da Ucrânia e não cantou Back In The URSS. Era o começo da invasão russa e ele dizia, assim, de que lado estava. De volta ao Brasil, e dá-lhe mais semiótica, o contexto refaz de novo o significado. Paul McCartney empunha as cores verde e amarelo não por apoiar algum grupo político específico, mas por saudar uma ideia ingênua mas ainda comovente de povo inteiro. Assim como quem o vê aceita seu puritanismo, Paul, ao contrário de Bebel, não faz ideia de onde está pisando.

Paul apoiando a Ucrânia em show nos Estados Unidos Foto: PMproductions
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