Kendrick Lamar lança disco e se consagra como ícone

'Mr. Morale & the Big Steppers' é quinto álbum de estúdio do rapper, que chega cinco anos após seu último lançamento

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Por Jon Caramanica
Atualização:

Kendrick Lamar há muito extrai o poder máximo de sua mistura do interior e do global, o que o torna um tipo particular de superstar geracional - aquele que carrega o peso dos outros. Em alguns lugares em Mr. Morale & the Big Steppers, o quinto álbum de estúdio do rapper, ele se queixa do topo da montanha que passou a última década escalando. São encantamentos esgotados e solitários: “Não consigo agradar a todos”, “Eu me escolho, sinto muito”.

Em novo disco Lamar está angustiado, devastado por seu passado e lutando para melhorar o amanhã, cercado por uma colisão de dúvidas e obstinação. Foto: Mark Makela/Reuters/Arquivo - 17/6/2018

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Lamar, 34 anos, é um técnico surpreendente, um observador atento da vida negra, um super-herói proletário, um artista que conta com peso moral em seu trabalho. Mas a julgar por Mr. Morale, lançado na sexta, 13, ele também está angustiado, devastado por seu passado e lutando para melhorar o amanhã, cercado por uma colisão de dúvidas e obstinação. E falhas também.

Cinco anos se passaram desde o último álbum de Lamar, o vencedor do Prêmio Pulitzer DAMN., e mesmo essa lacuna tem um ar moral - Lamar surge como alguém que recusa a cultura pop, um pensador que só fala em seu próprio ritmo.

Mas talvez cinco anos seja o tempo necessário para se livrar dos longos ecos das percepções e expectativas de outras pessoas. O Lamar de Mr. Morale soa solitário e tenso, cada vez mais consciente dos fardos colocados sobre ele por sua educação e potencialmente inseguro sobre sua capacidade de superá-los. Ele faz esses cálculos em algumas das produções mais desoladas de sua carreira. Ele está recuando de mais de uma maneira.

Ansiedade

Se To Pimp a Butterfly, de 2015, foi o pico da polêmica social de Lamar, e DAMN., de 2017, foi seu álbum da ansiedade - o fruto de perceber como seus pensamentos muito particulares estavam se tornando muito públicos e escrutinados -, então Mr. Morale é sobre recuar e refletir sobre sua responsabilidade com a pessoa no espelho e com o punhado de pessoas que você mantém próximas - uma voz recorrente no álbum é a de Whitney Alford, parceira romântica de longa data de Lamar, embora talvez não mais, dependendo de como você interpreta Mother I Sober.

Isso começa com a família, e duas das músicas mais emocionantes do álbum tratam dos pais de Lamar. Em Father Time, ele detalha como seu pai o criou para ser implacável consigo mesmo, e enterrar suas incertezas: “Homens nunca devem mostrar sentimentos, ser sensível nunca ajudou / Sua mãe morreu, eu perguntei por que ele voltou a trabalhar tão cedo?/ Sua primeira resposta foi: ‘Filho, é a vida, temos que pagar as contas’.”

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Infância

Mother I Sober - que apresenta vocais macios de Beth Gibbons do Portishead, uma oportunidade perdida - atravessa o abuso doméstico e a frustração de Lamar com sua própria inação na infância, mas depois se volta para suas próprias falhas, na forma da infidelidade. Ouvir Lamar aparentemente confessar esse tipo de deslealdade íntima é parte de uma imolação da personalidade ética que ele cultivou por anos. Ou talvez tenha se imposto a ele: “Gosto quando eles são pró-negros, mas eu sou mais Kodak Black”, ele canta em Savior.

Ele vai ainda mais longe em We Cry Together, um estranho acerto de contas sobre um relacionamento profundamente destruído, com o papel de sua parceira vividamente falado-cantado pela atriz Taylour Paige. A música pulsa com uma toxicidade surpreendentemente crua, mesmo que interpretada a partir de um personagem. É também, talvez perversamente, uma das canções de maior sucesso musical do álbum, um alinhamento estremecedor de ritmo e sentimento.

Kendrick Lamar lança Mr. Morale & the Big Steppers, quinto ábum de estúdio do rapper. Foto: Serjão Carvalho/Estadão/ Arquivo - 7/4/2019

O oposto é verdadeiro em Auntie Diaries, em que Lamar fala sobre duas pessoas próximas que se assumiram como transgêneros. Ele faz isso de uma maneira séria, mas desajeitada - há misgendering e deadnaming. E, na releitura de sua ignorância de infância, ele invoca e repete um insulto homofóbico várias vezes. Essas são gafes, assim como a produção sem fôlego e sem alegria - é tão sonoramente descompromissada quanto apática.

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Universal

Lamar é o raro músico popular que recebe aclamação quase universal, não apenas artística, mas muitas vezes como uma espécie de modelo de virtude. Mas há todo tipo de complexidades e heterodoxias que são sufocadas pela acolhida descomplicada. Mr. Morale parece ser um corretivo para isso - é um álbum que visa repelir. Ou, se não for bem isso, pelo menos está em paz com a alienação de parte de seu público.

É também um lembrete de quão raro é hoje em dia o encontro da música popular com a política instável, e um soco no estômago para a presunção de que arte e ideias progressistas sempre andam de mãos dadas.

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Em duas canções, Lamar expressa uma espécie de simpatia por R. Kelly, que foi condenado por tráfico sexual e extorsão. E uma das vozes que aparece ao longo do álbum é a do rapper da Flórida Kodak Black que, no passado, enfrentou acusações de agressão sexual - mais tarde, ele se declarou culpado de acusações menores de agressão. Optar por trabalhar com Kodak é uma provocação criativa e política - sugere que Lamar acredita em redenção (ou talvez que todos sejam falhos, alguns mais publicamente do que outros), mas também parece uma repreensão implícita a quem não vê poesia, dor ou progresso no trabalho da Kodak ou de seus pares. Na verdade, há muito de tudo isso.

Esses são um tipo de desafio - de certa forma, são as decisões mais voltadas para o público neste álbum, que muitas vezes parece insular, liricamente e musicalmente. 

Mr. Morale é provavelmente o trabalho menos consistente tonalmente de Lamar. Ao contrário de DAMN., em que Lamar tentou suavizar as arestas de suas músicas e chegou ao seu álbum mais comercialmente atraente, Mr. Morale - no qual Lamar trabalha com seus colaboradores frequentes Sounwave e DJ Dahi, Beach Noise, Duval Timothy e outros - é esguio e estruturalmente errático, cheio de mudanças de batida no meio da música, com um piano triste e alguns momentos de silêncio. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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