No limbo

Emudecido por tapumes, coreto que abrigou sons do meio-dia é testemunho de uma cidade refém do seu presente

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Por Fraya Frehse
Atualização:

Talvez por amanhã ser dia de São Paulo, pediram que eu fosse lembrado, encravado que estou na Praça da República há décadas, e emparedado por tapumes há mais de ano. Mas sou eu que quero lembrar. Para libertar-me, ao menos pelo instante destas linhas, do esquecimento a que me confinaram. Deslembrança tamanha que o que sei de mim depende do que de mim sabem os humanos. E, aí, não faltam versões.

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Há estudiosos que não pestanejam em situar, em texto e planta, minha inauguração em 1912, apenas alguns anos após o ajardinamento da Praça da República, antigo Largo dos Curros, que sediava touradas e circos de cavalinhos. Ajardinamento em estilo de modernidade francesa oitocentista entre 1902 e 1904, e capitaneado pelo prefeito Antonio Prado, com direito a lago riscado por pontes de ferro fundido e pontilhado por pedras ornamentais, além de gramado e canteiros prometendo árvores de sombra. Tudo era serpenteado por caminhos calçados e iluminados para o transeunte em busca de repouso, entre o ir e vir do trânsito, e faceava o recente edifício da Escola Normal e seu Jardim de Infância, iniciativas pioneiras em prol do ensino público na cidade.

De fato, faria sentido eu ter nascido naquela época. No mínimo desde a década de 1870 os jornais paulistanos noticiam a armação e desmontagem de coretos para celebrações públicas que iam da chegada dos soldados da Guerra do Paraguai à festa do Divino Espírito Santo na Igreja da Consolação. Historicamente de origem portuguesa, e derivados do intuito de transportar para o ar livre o coro das igrejas, é só na década de 1880 que a fotografia de rua em São Paulo testemunha coretos como eu, construídos para durar em uma só praça. Foi Militão Augusto de Azevedo quem flagrou de modo pioneiro, em 1887, esses meus irmãos nos antigos largos da Assembleia e do Palácio, atuais Praça João Mendes e Pátio do Colégio. E nos jornais da época pululavam notícias acerca de bandas musicais, sobretudo militares, tanto no coreto do pátio, que juntava a fina flor da sociedade, quanto, a partir de 1902, naquele do Largo da Concórdia do italiano Brás, com “avultada concorrência”. Para não mencionar, de 1905 em diante, os concertos para “famílias” no coreto do Jardim da Luz às quintas-feiras e domingos.

Não foi nesse momento, porém, que eu nasci. É verdade que em 1911 o prefeito Raymundo Duprat acatou o pedido de certo Gregorio Sabato para construir gratuitamente um coreto na Praça da República. Porém é só no domingo, 7 de maio de 1961, que o jornal em que agora escrevo noticia, sob uma fotografia (meu primeiro retrato), a minha inauguração “ontem à noite” com um concerto da banda da Guarda Civil, “restabelecendo-se uma tradição dos jardins públicos brasileiros”. Foi iniciativa do pintor e crítico de arte carioca Quirino da Silva, com o apoio do Diário da Noite, em que ele trabalhava. Fotografias dos coretos paulistanos mais antigos sugerem a seu modo que sou de outra época: minhas vestes são de madeira talhada num estilo bem mais próximo de resquícios de certo art nouveau do que do ecletismo rendilhado do ferro fundido e das madeiras do início do século 20.

Considerar a data da inauguração permite compreender também por que não apareço em fotografias e cartões-postais sobre a Praça da República das primeiras décadas da centúria. Enfim, há como entender por que o poeta Paulo Bomfim, profundo conhecedor da história do centro paulistano e dono de prodigiosa memória, não me divisa nem de longe nas lembranças de seu passado boêmio na praça dos anos 1940, apesar de discernir com precisão o burburinho espevitado das “normalistas” e seus namoros por ali – além do fotógrafo lambe-lambe Martins Guerra e de “seu” Antônio, “guarda-ternura” eternizado numa das encantadoras crônicas de Insólita Metrópole. Nem eu, coreto, conheci esse “anjo da guarda” que “cobria com jornal os pobres adormecidos sobre o banco do jardim”.

De pé na praça a partir de 1961, saia rodada octogonal de balaustradas de madeira sobre uma base de tijolos com piso de pastilhas, foi no embalo dos mais diversos acordes musicais que atravessei as décadas seguintes. Primeiro abriguei conjuntos folclóricos e Inezita Barroso, bandas da Força Pública e concursos de bandas musicais, além de “dois aparelhos de televisão” durante a Copa de 1970. Já no final desta década os jornais começam a noticiar shows, individuais ou de bandas. Entre agosto de 1986 e dezembro de 1988, por sua vez, vivi a glória: sediei o projeto Som do Meio-Dia, da Secretaria Municipal da Cultura, que quase regularmente às terças-feiras me transformava em palco para músicos como Jorge Mautner, Luiz Melodia e Hermeto Pascoal.

Desde então, nada mais que iniciativas pontuais. Em prol de minha saúde física, uma reforma em 2003 e outra em 2007. Já em favor dos ouvidos dos frequentadores da Praça da República, o movimento “Cultura de Boteco” (2003), uma “Revirada” de dança na região do Arouche (2012), quando não algumas atrações da Virada Cultural.

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Até que um misto de omissão e esquecimento emparedou tudo. Ausentes os instrumentos, os músicos, a música, para que existir? Só o que me resta é sobreviver oferecendo meu teto a quem não tem um. E, como desde 2012 não falta quem reclame disso, o que faz o poder público? Crucifica minha saia com pregos que sustentam, da base ao beiral, os tapumes. Não fossem os grafiteiros e pichadores, a sisudez indiferente do burro-quando-foge ainda prevaleceria nas minhas vestes. Volta e meia – contam os policiais que fazem ronda na praça –, moradores de rua retiram um ou outro tapume para reassumir o seu abrigo, meu ventre. A Prefeitura volta a tapar tudo. Gato e rato. E no meu âmago negro se acumulam cheiro de urina, tocos de cigarro, camisinhas e um silêncio ensurdecedor.

Ruína urbana, sobrevivência residual de outro tempo? Em São Paulo, não sou nada disso. E não estou só. Desmemoriado como outros testemunhos materiais do passado, sou vívida memória de como esta cidade é refém de seu presente.