PUBLICIDADE

O racismo e a longa batalha sobre '...E o Vento Levou'

A remoção do clássico filme do catálogo de streaming da HBO é mais um capítulo em sua controversa história

Por Jennifer Schuessler
Atualização:

Quando a HBO anunciou na terça-feira que temporariamente removeria do seu canal de streaming o filme ...E o Vento Levou foi como se mais um monumento confederado fosse derrubado.

Cena do filme '...E o Vento Levou', de 1939 Foto: Warner Home Video

PUBLICIDADE

...E o Vento Levou, hoje, talvez seja lembrado pelos jovens apenas como o filme favorito da vovó (ou talvez como fonte de uma piada contundente que abre o filme de Spike Lee, Infiltrado na Klan). E em contraposição a conservadores famosos que acusaram a HBO Max de censura, muita gente nas redes sociais qualifica o filme de monótono.

Mas o clássico de 1939 – que ainda é o filme de maior bilheteria de todos os tempos, moldou de maneira duradoura o entendimento popular da Guerra Civil e da Reconstrução, talvez mais do que qualquer outro artefato cultural.

“Você deseja ter um casamento sulista de antes da Guerra Civil – de onde vem isto?”, disse Kellie Carter Jackson, historiadora do Wellesley College que dá um curso sobre escravidão e o cinema. “As pessoas dirão que não assistiram ao filme. Mas eles viram, embora não no seu formato original”.

A decisão da HBO Max foi tomada um dia depois de o Los Angeles Times publicar um artigo opinativo assinado por John Ridley, roteirista de Doze Anos de Escravidão, criticando ...E o Vento Levou por seus estereótipos racistas e por encobrir os horrores da escravidão, demandando que ele seja apresentado somente com um contexto histórico adicionado. (Alguns dias depois a estudiosa do cinema afro-americano Jacqueline Stewart anunciou, também num artigo para a CNN.com que ela se encarregará da introdução quando o filme retornar ao serviço de streaming).

Mas a exclusão do filme também representa um reconhecimento tardio das críticas feitas por afro-americanos que surgiram imediatamente depois da publicação, em 1936, do romance de Margaret Mitchell, mesmo que tenham tido pouca repercussão na mídia branca.

Mitchell, ex-jornalista e autora do livro (seu primeiro e único) escreveu o romance enquanto se recuperava de um ferimento e esperava vender cinco mil exemplares dele. Pelo contrário, ele se tornou uma sensação e foram vendidas quase um milhão de cópias em seis meses e ela conquistou o Prêmio Pulitzer e o National Book Award.

Publicidade

A produção da versão para o cinema, incluindo a escolha dos artistas para os papéis de Scarlet O’Hara e Rhett Butler, foi coberta incessantemente pela imprensa. E na noite da estreia, em 1939, sete milhões de exemplares do livro foram vendidos.

O frenesi em torno do romance e do filme também desencadeou uma loucura nacional pelo Dixieland (apelido dado ao Sul dos Estados Unidos). Mitchell foi inundada com pedidos para autorizar a venda de canetas, chapéus etc., com temas baseados no livro. Em 1939, a Macy’s consagrou vários andares da loja a produtos associados ao filme, com o tema O Velho Sul chega ao Norte.

“As pessoas adoraram”, disse Karen Cox, historiadora da universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, e autora do livro Dreaming of Dixie: How the South was Created in American Popular Culture. E a adoção pelo Norte da nostalgia das plantações no livro de Mitchel, com sua representação de escravos obedientes e felizes, não foi somente consumismo nefasto.

“Havia um movimento nascente em favor dos direitos civis na década de 1930, mas todos que assistirem a este filme ou lerem o livro terão uma ideia de como as coisas eram. Ele tornou mais fácil para os americanos brancos do Norte verem os migrantes afro-americanos chegando a lugares como Chicago e dizerem “por que você não age como aqueles negros?”

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Mas mesmo com os americanos brancos amando a luz do luar e as magnólias, os afro-americanos faziam suas objeções. Logo depois de o produtor David Selznick adquirir os direitos para o filme, houve queixas de que a versão para o cinema incitaria a violência, difundiria a intolerância e até mesmo arruinaria um projeto de lei federal proibindo linchamentos.

Margareth Mitchell reagiu desdenhosamente às críticas. “Não tenho intenção de permitir que negros agitadores profissionais mudem meus sentimentos de raça para com aqueles com os quais minhas relações sempre foram de afeição e respeito mútuo”, ela escreveu para um amigo.

O filme tentou tirar alguns elementos racistas do romance. Referências à Ku Klux Klan, que no livro é chamada de “necessidade trágica”, foram omitidas. Com relutância, Selznick também cortou do roteiro um insulto racial comum, mas notório ("A palavra de ódio”, como disse um jornalista afro-americano).

Publicidade

O filme também refinou uma cena do livro em que Scarlett, correndo sozinha no meio de uma favela quase é estuprada por um negro, o que provoca um ataque de retaliação pela Klan. No lugar dele, o atacante é um branco pobre e quanto ao grupo que vai vingar a honra dela não é especificado.

“Um grupo de homens parte para caçar os que perpetraram uma tentativa de estupro sem conotação racista no caso”, escreveu Selznick.

Mas o filme colocou a mitologia da nostálgica Causa Perdida, a visão nacional dominante da Guerra Civil – a começar dos intertítulos na abertura prestando homenagem “a uma terra de Cavaleiros e campos de algodão”, “um belo mundo onde a Valentia deu seu último adeus”.

Mesmo durante a produção do filme houve apelos dos afro-americanos para um boicote. E depois ocorreram protestos na frente dos cinemas em Chicago, Washington e outras cidades.

As críticas ao filme foram duras. O The Chicago Defender inicialmente publicou uma coluna taxando-o de inofensivo e as interpretações de Hattie McDaniel (Mammy) e Butterfly McQueen (Prissy) de “arte negra”; Mas uma semana depois publicou uma resenha chamando o filme “bomba de terror contra a América negra”, um sentimento que foi repetido em outros jornais negros como o Pittsburgh Courier, que denunciou a representação de todos os negros como “criados felizes e estúpidos indefesos, irracionais.

Entre os que viram o filme na época estava o adolescente Malcolm X: “Eu era o único negro no cinema e quando Butterfly McQueen apareceu na tela minha vontade era me esconder embaixo do tapete” ele escreveu em sua autobiografia.

O público branco, por seu lado, foi arrebatado pelo filme de quase quatro horas de duração, em tecnicolor, com suas centenas de extras, um guarda-roupa luxuoso e temas de coragem e sobrevivência que repercutiram num país saindo da Depressão.

Publicidade

Os jornais brancos, incluindo o The New York Times, realizaram uma cobertura entusiasmada da estreia do filme em Nova York e Atlanta, onde quatro dias de festividades incluíram a apresentação do coral da igreja Ebezener Batista cantando na frente de um arremedo de Tara. Mas poucos notaram os protestos de afro-americanos ou qualquer crítica negra ao filme.

Alguns artistas negros contestaram diretamente a nostalgia adocicada. Em 2001, o espólio de Margareth Mitchell entrou numa batalha de direito autoral, que perdeu, contra a paródia da escritora Alice Randall, The Wind Done Gone, do ponto de vista dos escravos. As continuações autorizadas, no entanto, tentaram, inapropriadamente, atualizar a política racial do livro, mas mantiveram o romance centralizado no branco.

Em Scarlett, de Alexandra Ripley, de 1991, a heroína cuida afetuosamente de Mammy moribunda, logo no início. O livro Rhett Butler’s People, de Donald McCaig, lançado em 2007, se concentra na fase posterior da Guerra Civil e a luta pelo restabelecimento da supremacia branca, mas encobre a questão da Klan (e uma possível participação nela de Rhett Butler|).

Mas mesmo nos EUA, a história mantém seu fascínio, até junto a um público que “a conhece melhor”, como escreveu o crítico Vincent Canby, do The New York Times, numa resenha sobre o filme em 1998.

A historiadora Kellie Carter Jackson disse que os alunos normalmente chegam às suas aulas sem nunca terem visto o filme. Mas E o vento levou é uma das propostas do curso à qual eles mais respondem.

Os alunos dizem que amam, ou que odeiam o filme”, disse ela. “Eles adoram a estética, extremamente exuberante. Mas sabem que vou fazer com que cheguem mais a fundo. E quando isto ocorre, eles afirmam: “É horrível”.

Tradução de Terezinha Martino

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.