Rapper Gaël Faye relata Massacre de Ruanda em autoficção

Autor franco-burundiense que esteve na Flip revive genocídio africano perpetrado há 25 anos

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Por Ronaldo Bressane
Atualização:

Que a autoficção tenha se tornado o subgênero mais presente na ficção literária contemporânea já não se discute. É o subgênero mais mobilizador, mais vendedor e, raras vezes, o mais inovador. Em tempos de fake news, a sinceridade e a verossimilhança apresentadas ao leitor pela chamada literatura de testemunho tem trazido o sopro de autenticidade que sentimos perder na própria vida e nos registros mais óbvios da realidade comum: a imprensa e a mídia de massa. A corrosão da realidade pelo fenômeno da pós-verdade faz com que os leitores procurem novas bússolas para se orientar – daí o apreço à literatura de depoimento. Por outro lado, a própria mídia de massa, concretizada em inúmeros formatos de reality shows – das minisséries televisivas em que seguimos as vidas de pessoas “reais” até os big brothers da vida, passando pela infinita narrativa narcísica das redes sociais –, nos viciou na narrativa confessional, no interesse mórbido pela intimidade alheia. Assim, a autoficção é tanto motor quanto sintoma da sociedade do espetáculo. E às vezes rende belos romances, como a estreia do rapper franco-burundiense Gaël Faye, Meu Pequeno País (editora Rádio Londres, tradução de Maria F.O. do Coutto, 192 páginas, R$ 59,50).

O escritor e músicoGaël Faye, do Burundi Foto: Rádio Londres

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Sempre bom lembrar que a autoficção, ou ficção autobiográfica, requer, em seu ideal, a fusão das três instâncias da ficção: o autor é igual ao narrador que é igual ao protagonista. Como explica Leyla Perrone-Moisés em seu incontornável Mutações da Literatura no Século 20, a autoficção “não são confissões, nem diários, nem autobiografias (...) são a fala do eu transposta numa forma original de ficção”. É o caso da saga Minha Luta, de Karl Ove Knäusgard, em que o autor norueguês devassa, com lupa mínima, o cotidiano de um escritor em crise na sociedade mais rica do mundo. Ou de Um Ano Depois, da francesa Anne Wiazemsky, em que a atriz e escritora recria com vivacidade o 1968 que dividiu ao lado do icônico Jean-Luc Godard. Ou das autoficções de autores luso-angolanos que flertam com o ensaio, como Também os Brancos Sabem Dançar, de Kalaf Epalanga, e Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida: no primeiro caso, o cantor entrelaça à biografia a história do gênero musical kuduro; no segundo, a ensaísta usa o próprio cabelo para desenrolar o tema da diáspora africana.

Nos quatro exemplos acima, um outro diferencial os eleva a um patamar singular: a história íntima conversa com a História. Mas é mais com os livros de Epalanga e Djaimilia que podemos aproximar o livro de Faye, muito original em seu recorte narrativo. Não só pelo fato de o rapper se tratar de um autor africano – mas ser um autor também africano. Estrela da literatura pós-colonial, que evoca a História desde um ponto de vista diferente das matrizes europeias, Faye, como seus colegas lusófonos – aos quais se pode somar Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria –, tem um pé na África e outro na Europa: seu lugar de fala é justamente o lugar do mestiço. E Faye guarda na pele uma divisão ainda mais dramática: o pai é um engenheiro francês, e a mãe, uma ruandesa tútsi – a mesma etnia que foi quase dizimada no Massacre de Ruanda, ocorrido há exatos 25 anos.

“Não moro mais em lugar algum. Morar significa fundir-se carnalmente à topografia de um lugar, aos meandros desiguais de um ambiente. Aqui, não sinto nada disso. Apenas transito. Alojo-me. Hospedo-me. Albergo-me”, afirma Faye, logo no começo, aludindo à sua vida na França. É então que decide regressar ao Burundi natal, na forma da ficção. Vai especificamente aos primeiros anos de sua adolescência, quando os pais se separam: o francês (“olhos verdes mordazes, cabelo castanho-claro de mechas louras e estatura de viking”) adora a vida aventureira na África, mas a mãe (“junco de água doce com silhueta delgada, beleza esbelta como um arranha-céu de pele negra da cor de ébano”) sonha em viver na estável Europa. Faye estuda em uma escola francófona, mora em um bairro de classe média alta; sua enorme casa, onde vive com a irmã, tem vários empregados. É uma perspectiva diferente da infância africana a que estamos habituados – sem a miséria e a violência extremas de um livro como O Que é O Quê, romance de Dave Eggers baseado nas memórias do sudanês Valentino Achak Deng. 

As memórias de Faye, que detalham em saborosas minúcias as grandes festas e as desventuras de sua turma de amigos, guardam um tom agridoce. Ele foca “a beleza das flores quase sem perfume”, no dizer de Bandeira, aquelas derradeiras cores logo antes de murcharem: as últimas descobertas gloriosas da infância, os primeiros conhecimentos hostis da adolescência. Aos poucos vai percebendo como sua vida é privilegiada em relação aos amigos e vizinhos, e a divisão artificial na região africana dos Grandes Lagos. Como neste diálogo nonsense com o pai:

“– A guerra entre os tútsis e os hútus é porque eles não têm o mesmo território? – Não, não é isso, eles vivem no mesmo país. – Então... é porque não têm a mesma língua? – Não, eles falam a mesma língua. – Então é porque não têm o mesmo deus? – Não, eles têm o mesmo deus. – Então... por que estão em guerra? – Porque não têm o mesmo nariz.”

A maioria dos pesquisadores não vê quase nenhuma diferença genética entre ambas as etnias bantus, além do fato social de os tútsis serem mais próximos da pecuária e os hútus da agricultura. A divisão artificial foi aprofundada pelos colonos alemães e depois belgas, que “viam” os tútsis como pessoas mais altas e os hútus com o nariz mais achatado – e as etnias eram definidas até na carteira de identidade. Desde os anos 1950, os tútsis foram aliados dos colonizadores, o que propiciou um aumento de animosidade e ressentimento entre a maioria hútu. No Massacre, deflagrado em abril de 1994, um milhão de tútsis foram estuprados e mortos pelos hútus – mais de 10% da população. O que torna este genocídio ainda mais absurdo é o fato de se tratar de rivalidade política estimulada pelo sanguinário colonialismo belga (tão mortífero, hoje sabemos, quanto o foram o nazismo e o stalinismo).

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O romance de Faye dá conta justamente desta irreal divisão entre tútsis e hútus na sociedade, extensiva à condição simultânea de africano e francês. “Descobri o antagonismo entre hútus e tútsis, a linha de demarcação intransponível que obrigava cada um a ficar num ou noutro campo. Nascíamos neste campo e, uma vez que nos era atribuído um nome, ele nos perseguia para sempre. Hútu ou tútsi. Ou um ou outro. Cara ou coroa. Como um cego que recupera a visão, comecei a compreender os gestos e os olhares, os não ditos e os modos que me haviam escapado desde sempre. A guerra, sem que se peça, sempre se encarrega de nos encontrar um inimigo. Eu, que desejava permanecer neutro, não pude. Tinha nascido com essa história. Ela corria em mim. Eu pertencia a ela.” A descoberta desta divisão invisível é também a descoberta dos últimos dias inocentes – que irão culminar na lindíssima cena em que o narrador espanta o medo e se atira de um trampolim de dez metros de altura, para o delírio dos amigos que o observam na piscina lá embaixo (cena que ilustra a capa do livro, de Toni Demuro). 

A partir desta cena, o mundo de Faye desmorona. Os presidentes de Burundi e Ruanda são asssasinados, e o massacre começa. A mãe de Faye vai a Ruanda rever os parentes – e, depois de encontrá-los mortos, retorna ao Burundi em psicose aguda. Os amigos se dispersam, as festas acabam: o pequeno país de Faye tem sua estabilidade corroída pelo massacre no país vizinho e é convulsionado pela guerra civil. O narrador e sua irmã são embarcados pelo pai para Paris, onde serão adotados e ganharão uma nova vida – jamais verão o pai novamente. Gaël se torna um dos rappers mais populares da França, e fatura os principais prêmios literários com sua autoficção. Mas a absurda guerra que viu na infância segue pautando sua arte, em que doçura e violência têm doses iguais. “Certas noites, o barulho dos tiros de tanques AMX-10 se confundia com o canto dos pássaros ou com o chamado do muezim, e eu até achava bonito esse estranho universo sonoro, esquecendo-me por completo de quem eu era.”*RONALDO BRESSANE É ESCRITOR E JORNALISTA, AUTOR DO ROMANCE ‘ESCALPO’ (REFORMATÓRIO), ENTRE OUTROS LIVROS

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