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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O fim do mundo é um medo e, de alguma forma inconsciente, um desejo

Quando vemos um acontecimento trágico e de impacto midiático, quando as coisas mudam rapidamente de lugar, costumamos pensar no ‘fim dos tempos’

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O ataque terrorista às Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, será um marco histórico por muito tempo. Primeiro sintoma de algo que assinala uma geração: quase todos saberão onde estavam quando receberam a notícia. Meus pais me disseram sobre as mortes dos presidentes Kennedy (1963) e Getúlio Vargas (1954), como eventos produtores de consciência. Outros fatos produzem classificações históricas, como a queda de Constantinopla diante das tropas turcas, em 1453 (fim da Idade Média em alguns sistemas de contagem). Alguns outros associamos a nós: nasci no ano em que a cantora Édith Piaf e o papa João XXIII morreram...

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Quando vemos um acontecimento trágico e de impacto midiático, quando as coisas mudam rapidamente de lugar (e as referências entram em movimento), costumamos pensar no “fim do mundo”. Quase todas as religiões falam em algum tipo de encerramento da história, como a conhecemos. Existe um sentimento forte na história do Cristianismo Ocidental, o Milenarismo (Milenialismo é o termo mais preciso). Tudo será mudado rapidamente com a intervenção de forças celestes e infernais. Das profecias de São Malaquias a Nostradamus, das Testemunhas de Jeová a Baby Consuelo, surgiram diversas formas de falar sobre um fim próximo.

O que se confunde é o fim do “meu mundo” com o fim do mundo. Isso pode derivar de choques tecnológicos (não consigo me adaptar ao novo modus operandi de cabos e de telas) até o fato de minha obsolescência física e mental. Eu, Leandro, tenho diploma de datilografia, noções de estenografia, domino bem numeração romana e sei o pronome de tratamento correto para um cardeal ou um reitor. No mundo que me cerca, tais habilidades são similares a saber fazer uma ponta de flecha lascada no Paleolítico: no máximo, curiosas. Constantemente o mundo torna datados meus saberes e institui novos (tais qual edição de vídeos para TikTok).

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Crises sanitárias e econômicas destravam as angústias sobre o fim do mundo. Na metade do século sexto da nossa era, governando Justiniano o Império Bizantino, uma praga (provavelmente peste bubônica) alastrou-se. Nas grandes cidades, como Constantinopla, estima-se que entre 40% e 50% da população tenha morrido. Para perspectiva, vamos tomar uma estimativa de 710 mil mortos por covid no Brasil, durante a recente pandemia. Tomemos uma média possível de 200 milhões de brasileiros entre 2019 e 2023, ou seja, 0,35% da população morreu. Uma tragédia sim, entretanto compare com a Peste de Justiniano para entender o impacto. Nós sabemos de onde vem a doença, criamos vacinas, temos medidas de controle e de tratamentos. A propósito, o saber médico-científico e a atuação épica dos profissionais de saúde foram decisivos para que o número de óbitos não disparasse. Imagine-se em uma área de Constantinopla (542 d.C.), sem ter a menor ideia de que a bactéria Yersinia pestis viajava por pulgas presentes em ratos. A angústia bizantina era gigantesca, e o sentimento de fim do mundo disparou. Depois, voltou forte com novo surto no século 14. Em 2012, sob influência de uma leitura dos maias (o povo que soube dizer sobre o fim do nosso mundo, mas nada disse sobre o fim do mundo deles), gerou-se até filme-catástrofe.

O fim do mundo é um medo e, de alguma forma inconsciente, um desejo. Faça um teste: quem hoje fala insistentemente sobre isso pertence a duas tribos distintas e complementares. Há um grupo desajustado, cansado e com dificuldades estruturais de adaptação (Umberto Eco os batizou de “apocalípticos”). Tal tribo adoraria que a maçaroca confusa de termos e práticas que lhes escapa fosse o prenúncio do apocalipse: “Não sirvo mais para isso e seria bom e justo que tudo se encerrasse comigo”. A segunda tribo, numericamente menor, apesar de próspera, é a dos que ganham dinheiro vendendo medo. O medo é commodity valiosa, talvez por causa das “vendas casadas” que ele provoca: armas, câmeras, livros, dízimos, vigias, seguros, para outras práticas e gastos. Uma casa com medo é muito mais cara do que uma casa sem medo. Uma carteira apavorada abre-se facilmente. O Pix flui de um dedo agitado pela proximidade do colapso de tudo.

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Norman Cohn estudou o sentimento do fim na história, na sua obra Na Senda do Milênio (Editora Presença). Jean Delumeau discorreu sobre esse sentimento nos livros História do Medo no Ocidente e Mil Anos de Felicidade (Companhia das Letras). Os diálogos de movimentos sociais e políticos no Brasil, sobre tais anseios, tornaram-se um bonito estudo, com organização de João Baptista Borges Pereira e Renato da Silva Queiroz: Messianismo e Milenarismo no Brasil (Edusp). A complexidade do tema implicaria uma vasta biblioteca para tratar dos Muckers, Canudos, Contestado, Catulé, Pedra Bonita e o Movimento de Pau de Colher, só para citar alguns fatos que misturam Messianismo e Milenarismo.

O mundo teima em resistir como uma parente rica e doente. O poeta T. S. Eliot determinou: “Assim expira o mundo / Não com uma explosão, mas um gemido”. (This is the way the world ends / Not with a bang but a whimper). Sua esperança está no meteoro?

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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