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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião | O mundo treme com as inversões de Donald Trump nos EUA

Da roupa ao hospital e à política: como inversões revelam fragilidades humanas e transformam nossa percepção da realidade

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Foto do author Roberto DaMatta

Se você acha que o tema é presunçoso, experimente vestir uma roupa pelo avesso. Vesti um suéter pelo avesso nos Estados Unidos, o país do “mind your own business” (cuide da sua vida), e um colega, que nem sequer me dava um humilde bom dia, parou-me no corredor e alertou que estava com a veste pelo avesso. “Você deve estar só”, concluiu calmo porque sabia o que significava estar sem o outro. Aquele que nos ampara, corrige, ensina e ama. O foco do meu desarranjo era uma roupa vestida pelo avesso: uma inversão.

Desígnios de Trump transformam os Estados Unidos de âncora em pântano, virando o comércio pelo avesso. Foto: Alex Brandon/AP

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O pai de um amigo sofreu um ataque cardíaco. Com 88 anos e sofrendo de Alzheimer, foi socorrido num hospital público desenhado para mal atender pobres e pretos. Internado e sofrendo os efeitos dos rituais de degradação – e, como escreveu Erving Goffman, despersonalização hospitalar –, ficou agressivo. Quando arrancou os acessos colocados nos seus braços e tentou fugir, pois se imaginou preso, foi atado à cama.

Toda internação é um avesso, uma inversão. A fantasia de estar aprisionado se explicava porque ligações sociais íntimas são substituídas por laços funcionais-racionais com médicos e enfermeiros desconhecidos. A doença é claramente mais importante do que o doente.

Ficar amarrado a uma cama, ver seus braços serem canais para remédios, ao lado do mal de Alzheimer, nos faz compreender por que o pai do meu amigo teria fantasiado estar numa prisão.

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No dia, entretanto, em que sua única filha veio substituir os irmãos, ela promoveu um drama que libertou o enfermo da sua fantasia de prisioneiro. Seu instrumento não foi remédio ou oração. Foi um poderoso mecanismo estrutural que sociólogos como Durkheim, Victor Turner, Goffman e Lévi-Strauss conheceram e estudaram. Foi a inversão. A filha comunicou ao pai que ela – e não ele – era a doente-prisioneira e ele, o visitante livre! Veja, papai – falou com a voz firme de um mestre ritualista –, eu estou também amarrada depois do tombo que tomei. Sou grata por ter você ao meu lado, cuidando de mim...

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Assim foi a noite dessa família aqui em Niterói. Enquanto isso, o mundo treme com as inversões de Donald Trump, que transformam os Estados Unidos de âncora em pântano, virando o comércio pelo avesso – a guerra que, impiedosa e irracionalmente, destrói elos de solidariedade, explodindo a piedade e a empatia que, como disse Rousseau em 1750, são a base do entendimento humano.

E aqui na terrinha, que a cada minuto burramente se reinventa, Lula III tem uma sugestão mágica para baixar o preço dos alimentos e deter a inflação: deixar de comprar comida e de comer!

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

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