Água Fresca: Uma Comédia de Virginia Woolf, peça que estreia nesta sexta, 7, no Sesc Ipiranga, quer apresentar ao público brasileiro uma faceta menos conhecida da escritora britânica: a do humor.
O texto, escrito em 1923 e revisitado pela autora em 1935, revela o lado cômico e satírico de Virginia Woolf. Inédita até agora no Brasil e única do gênero escrita pela autora de Mrs. Dalloway, a peça foi traduzida e adaptada por Victor Santiago, que idealizou o projeto ao lado do ator Gabriel Saito. A montagem fica por conta da diretora Sol Faganello.

A peça foi um presente de aniversário de Virginia Woolf para sua sobrinha, Angelica Bell, e traz diálogos ágeis e situações inusitadas. A trama satiriza figuras históricas como Julia Margaret Cameron, tia-avó da autora, que, em uma viagem à Índia achou por bem levar caixões consigo. Outra personagem do imaginário de Woolf que é satirizada na peça é a atriz Ellen Terry, um prodígio do teatro shakespeariano que tenta se livrar do marido, o pintor George Frederic Watts, 30 anos mais velho.
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Além disso, a peça aborda o colonialismo, as questões de gênero que eram debatidas na era vitoriana e faz uma crítica à intelectualidade modernista de Bloomsbury, grupo do qual a autora fazia parte. Leia um trecho abaixo.
A idealização do projeto nasceu como um desdobramento da tese de doutorado que Victor Santiago apresentou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2022, quando ele teve o primeiro contato com o texto que poucos brasileiros conheciam.
Uma Virginia e um texto a serem descobertos
Amigos desde a adolescência, Victor e Gabriel conversavam muito sobre Virginia Woolf e a descoberta do texto fez os amigos enxergarem a escritora com outros olhos. “Foi muito interessante porque no meu imaginário a Virginia Woolf era a Virginia Wolf de Nicole Kidman [no filme As Horas], fumando cigarro na fazenda. E aí ele me apresentou uma outra Virginia Woolf. Na verdade, a Virginia Woolf de fato", contou Gabriel Saito ao Estadão. “Ao trazermos essa obra ao Brasil, queremos mostrar uma Virginia Woolf multifacetada, cuja complexidade vai além dos rótulos tradicionais”, completa.

Victor Santiago destaca que a peça foi sistematicamente ignorada pela crítica por entender que se tratava de um desvio da autora, uma brincadeira que ela fez em família. Antes mesmo do doutorado, o tradutor buscou desconstruir a imagem melancólica de Virginia em sua tese de mestrado. “A obra dela não tem nada a ver com a morte. Quem lê Virginia sabe que a não é sobre a morte. O problema é que tentam conectar o suicídio, um dado biográfico, à sua obra e ficam caçando pistas desse suicídio e isso, a meu ver, é bastante injusto”, avaliou o tradutor.
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A montagem de ‘Água Fresca’
A diretora Sol Faganello explica que a peça se baseia em memórias da infância de Woolf, revelando uma autora capaz de rir de si mesma. A encenação busca a estética caricatural e exagerada, atualizando o conceito apresentado por Woolf no ensaio Valor do Riso, de 1905. No texto, a autora defende que o humor é uma forma de desestabilizar o status quo e de questionar as convenções impostas pela sociedade.
Outro texto de Virginia que Sol revisitou para compor Água Fresca foi Um Esboço do Passado. Na autobiografia deixada pela inglesa, a escritora lembra que as figuras da sua infância eram caricatas e cômicas.
A solução encontrada pela diretora foi levar para o palco técnicas da palhaçaria, aprofundando esses traços cômicos da obra.
A peça também atualiza os debates propostos por Woolf, como gênero, sexualidade e raça, conectando-os com questões contemporâneas brasileiras. O elenco – composto por atores de diversas etnias, pessoas LGBTQIA+ e corpos que rompem padrões tradicionais – expande as reflexões da autora. No palco, sete atores: Ana Paula Lopez, Camilla Flores, Danila Gonçalves, Dante Preto, Diego Pallardó, Gabriel Saito e Joana Santos.

A direção de arte de Pedro Paulo de Souza busca referenciais na estética do movimento de Bloomsbury, com mobiliários e objetos pintados e envelopados com traços listrados e angulosos. A luz de Sueli Matsuzaki traz momentos expressionistas e suaves, buscando imprimir na cena uma ideia onírica, como se fosse um sonho. A trilha sonora de Camila Couto define o espaço-tempo das personagens e explora elementos sonoros que interagem com a comicidade da peça.
Para ler ‘Água Fresca’
Além do espetáculo, o projeto prevê o lançamento do livro Freshwater, com as traduções de Victor Santiago. O volume, publicado pela Editora Nós, é bilíngue e nele o leitor vai encontrar as duas versões do texto, a de 1923 e a de 1935.
O lançamento da obra acontece no dia 9 de fevereiro, às 15h, no Sesc Ipiranga. No evento, Victor Santiago vai conversar sobre a obra com Davi Pinheiro, que foi o seu orientador na UERJ, e Ana Carolina Mesquita, tradutora de outras obras de Virginia.

- Editora: Nós (págs, 200 R$ 79)
Leia um trecho de Freshwater
Um estúdio em Dimbola, casa dos Camerons, cheio de fotografias; Charles Cameron, um ancião com cabelos e barba brancos, está sentado com uma toalha de banho ao redor do pescoço. Maria Madalena, a empregada, está empenhada em secar o cabelo de Charles que acaba de ser lavado, e está bem sedoso.
Sr. Cameron
É a sexta vez em oito meses! Sempre que nos preparamos para ir à Índia,6 Julia insiste – [Aqui, Maria, que está penteando Charles, puxa o cabelo dele com força.] – Ai! Ai! Ai! – Julia insiste que a minha cabeça seja lavada. Ainda que a gente nunca vá à Índia. – Às vezes acho que nunca iremos à Índia. No último momento algo acontece – algo sempre acontece. E assim nós continuamos aqui, vivendo essa vida de poesia, de fotografia, de banalidade, e nunca deverei ver a terra de minha juventude mística. Nunca poderei desvendar a verdadeira natureza da virtude dos filósofos jejuadores do Baluquistão. Nunca poderei solucionar o grande problema, ou entender o Sentido da Vida. Sou um cativo nas mãos da Circunstância – [nesse momento, Maria puxa a barba de Charles.] Ai! Ai! Ai!
Maria
Cameron, querido Sr. Cameron, deixe-me lavar a sua barba. É a barba mais bela de toda a Ilha de Wight. A Sra. Cameron nunca deixará o senhor ir à Índia – [Entra a sra. Cameron, uma senhora de rosto bronzeado tal qual uma cigana, vestindo um xale verde, preso por um enorme camafeu. Ela para repentinamente e ergue a mão.]
Sra. Cameron
Que fotografia! Que composição! A verdade bebendo na fonte da inspiração! A alma libertando-se do corpo! Para cima, menina, olhe para cima! Jogue os braços em torno do pescoço dele e olhe para cima. [Maria e o sr. Caeron fazem uma pose.] Deixe sua cabeça pender sobre o peito, Charles. A alma acaba de deixar a morada. Ela lança voo – onde estão as asas, as asas do anjo, as asas do peru, que os Andrews me deram no último Natal?
Maria
Estão embaladas, senhora.
Sra. Cameron
Embaladas – embaladas por quê? Ah – Lembrei. Iniciamos nossa jornada para a Índia às 2:30 em ponto. [Maria continua escovando a barba do sr. Cameron.] Vocês já ouviram algo mais irritante? Estou prestes a finalizar meu estudo do cavaleiro Galahad velando o Santo Graal sob a luz da lua. A cozinheira já está a postos. A luz está sublime. No último instante, chega a notícia de que Galahad tem que levar as ovelhas para outra cidade. É dia de feira. Ovelhas! Dia de feira! [Com bastante desdém.] Onde vou encontrar outro Cavaleiro só Deus sabe! [Ela olha distraidamente pela sala, pela janela e por um curto espaço de tempo.]
Sr. Cameron
[deitado de olhos fechados, enquanto Maria lava sua barba.] Liberte sua mente das questões do presente. Procure a verdade onde a verdade está escondida. Siga a chama que não se apaga – Madalena, não puxe minha barba. Livre-se das suas futilidades. Deixe-nos ser livres como pássaros do vento. [Ficando cada vez mais entusiasmado e falando alto e de modo profético.] Às 2:30 viajamos para a Índia! [A porta se abre quando ele diz isso e Lord Tennyson entra.]
Água Fresca: Uma Comédia de Virginia Woolf
- Onde: Sesc Ipiranga (Teatro) - Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo/SP
- Quando: Sextas e sábados, às 20h, e aos domingos, às 18h – até 30 de março (Não haverá apresentações nos dias 28 de fevereiro e 1 e 2 de março)
- Ingressos: sescsp.org.br
- Preço: R$18 a R$ 60