Conto de Clarice Lispector, ‘Um Dia a Menos’ inspira monólogo de Ana Beatriz Nogueira

Atriz volta a São Paulo com a peça que estreou antes da pandemia, em que a autora mergulha na solidão

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Por Ubiratan Brasil

O cenário é austero: uma poltrona, uma mesa de apoio e um telefone. Em cena, é o suficiente para Ana Beatriz Nogueira criar o mundo interior de Margarida Flores, personagem do monólogo Um Dia a Menos, que volta ao cartaz no Teatro Renaissance. “Na verdade, é quase uma estreia, pois a primeira temporada foi curta e em um horário alternativo”, comenta a atriz, uma das mais completas do palco nacional.

Basta vê-la em cena na peça que Leonardo Netto adaptou e dirige a partir de um conto de Clarice Lispector (1920-1977). Um dos últimos contos escritos pela autora, no ano de sua morte, o texto lida de uma forma peculiar com a solidão, que obriga as pessoas se a fecharem em seu mundo sem perceber.

A escritora Clarice Lispector rompeu com o realismo social na literatura brasileira Foto: Acervo Estadão

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É o que acontece com Margarida, que vive solitária desde a morte da mãe, na mesma casa onde nasceu e foi criada. Sua rotina é quebrada quando se descobre completamente só, com a ausência de Augusta, a funcionária doméstica que trabalha ali há muitos anos e que está em férias. Assim, Margarida é obrigada a cuidar de tudo sozinha, como cuidar de suas refeições. “É uma mulher que não tem esperança na vida, pois viveu grudada numa rotina”, observa Ana Beatriz, que estreou o espetáculo em 2019, no Rio.

Em seguida, veio a pandemia, que deu um novo e mais dramático sentido àquela mulher que vive enclausurada. Nessa época, como exemplo de resistência da arte, Ana Beatriz se uniu aos artistas que exibiam sua arte por vídeo, em transmissões caseiras. “Em casa, diante da câmera, tive a certeza de que o espetáculo não precisava ser grande.”

De fato, a emoção é conquistada com mínimos recursos: pela voz, gestos, pausas. “Margarida é uma mulher que procura o que vai dizer, os sentimentos são mais íntimos que expressos”, observa a atriz, que segue rigorosamente o texto de Clarice Lispector. “Tenho pavor de trocar alguma palavra: não é preciso.”

Basta ler um trecho do conto para ter a mesma certeza: “O dia começara às quatro da manhã, sempre acordara cedo, já encontrando na pequena copa a garrafa térmica cheia de café. Tomou uma xícara morna e lá ia deixá-la para Augusta lavar, quando se lembrou de que a velha Augusta pedira licença por um mês para ver seu filho. Teve preguiça do longo dia que se seguiria: nenhum compromisso, nenhum dever, nem alegrias nem tristezas”.

Margarida espera que o telefone toque para quebrar aquela repetição infinita. “Quando finalmente isso acontece, é um engano”, comenta Ana Beatriz. “No meu entender, a pessoa do outro lado passa pelo mesmo sofrimento.”

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A atriz, aliás, amparada ainda no texto clariciano, acredita que aquela mulher já não está mais lá. “Eu desconfio que a morte vem. Morte? Será que uma vez os tão longos dias terminem? Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe? Um truque da vida? É perseguição?”, diz o conto. “Acho que ela está recapitulando o que já foi.”

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