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Economia e políticas públicas

Opinião|Democracia em baixa na América Latina

Crises econômicas, sociais e principalmente de segurança levam eleitorados da América Latina a rejeitar governantes e se sentirem mais atraídos pelas supostas vantagens que o autoritarismo traria. Cientista política Daniela Campello estuda o fenômeno.

Foto do author Fernando Dantas

Entre 2018 e 2022, houve na América Latina eleições presidenciais no Brasil (duas), Paraguai (duas), Colômbia, México, Guatemala, El Salvador, Panamá, Uruguai, Argentina, República Dominicana, Bolívia, Chile, Peru, Equador, Costa Rica e Colômbia.

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Com exceção do Paraguai, em todas essas eleições os candidatos incumbentes (ou o presidente tentando reeleição ou o candidato por ele apoiado) foram derrotados. Em mais três eleições programadas na América Latina para 2023-24, Equador, Argentina e Uruguai, a tendência predominante hoje parece anti-incumbente.

Na América do Sul, como nota a cientista política Daniela Campello (Ebape-FGV), o nível de confiança nos governos caiu, a partir de 2009, em todos os países, com exceção do Uruguai. Na média, saiu-se de 50% em 2009 para algo em torno de 25% em 2020.

Novamente com exceção do Uruguai, a satisfação com a democracia também caiu na América do Sul de forma significativa, aproximadamente naquele mesmo período. Fenômeno semelhante ocorreu com a satisfação com a economia, mas a partir de patamares mais baixos.

O apoio à democracia na região também sofreu queda forte. Os que consideram a democracia o melhor regime caíram de 66% em 2016 para 55% em 2020, e os que manifestam indiferença à democracia subiram de 16% para 27% no mesmo período.

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De forma preocupante, o apoio à democracia é menor entre os mais jovens do que entre os mais velhos. Por faixa de renda, os muito ricos e os muito pobres são menos propensos a apoiar a democracia.

Uma exceção retumbante à impopularidade presidencial preponderante na América Latina é El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele, no poder desde junho de 2019, exibe índices de popularidade impressionantes, na casa de 80-90%.

Assim, El Salvador tornou-se a "democracia" - as aspas serão explicadas na sequência - mais satisfeita da América Latina. O índice de satisfação com a "democracia" saltou de pouco mais de 15% em 2018 para mais de 60% em 2023.

Eleito presidente em primeiro turno aos 37 anos, o populista Bukele conseguiu obter poderes emergenciais e suspender liberdades individuais para, sem nenhuma transparência nos processos, iniciar uma campanha de prisões e julgamentos em massa de criminosos e supostos criminosos, que já resultou em 100 mil presos, ou 2% da população adulta do país.

O alvo são as violentíssimas gangues criminosas do país, com ramificações e até parte das raízes nos Estados Unidos, e que são a principal causa de El Salvador, junto com Honduras, ser tradicionalmente o recordista mundial de homicídios per capita.

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Com as prisões em massa, os homicídios por 100 mil habitantes caíram de 104 em 2015 para 7,8 em 2022. É verdade que esses são dados oficiais que podem ter algum grau de manipulação, mas Campello observa que o maciço e impressionante apoio da população a Bukele indica que a queda da violência deve ser real.

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Ela deixa claro que El Salvador já sofre um alto grau de deterioração democrática desde que Bukele chegou ao poder. No figurino típico de populistas com tendências autoritárias, ele capitaneou um cerco ao Congresso pela polícia, exército e seus apoiadores em 2019, quando matéria decisiva para seu governo estava sendo votada.

Já em 2021, puxando votos com seu sucesso, elegeu 56 de um total de 84 parlamentares. Bukele fez campanha sem debates e comícios, primordialmente pelas mídias sociais, com discurso anticorrupção e antissistema e, na prática, acabou com o bipartidarismo que definia a política em El Salvador.

Desde 2022, o presidente já removeu o procurador geral, substituiu e nomeou novos juízes no Supremo, mudando as regras para poder controlar o sistema judiciário. Além disso, instituiu a reeleição para presidente, que não existia em El Salvador.

Campello, que tem se deslocado a trabalho para diferentes partes da América Latina e áreas com forte contingente latino-americano nos Estados Unidos, está muito impressionada com o sucesso de Bukele não só no seu país, mas em toda a região, onde muitos políticos tentam - de forma mais e menos escancarada - emular seu discurso de "mano dura (mão dura)" e suas ideias.

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A cientista política menciona nomes como Patricia Bullrich na Argentina, Guillermo Lasso, presidente do Equador, José Antonio Kast, candidato a presidente derrotado no Chile, e Xiomara Castro, presidente de Honduras. No Brasil, na visão da pesquisadora, um potencial candidato presidencial dessa linha seria Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo.

No momento, Campello está ocupada no projeto "Democratas Relutantes", de estudo do fenômeno de perda de popularidade e deterioração de democracias na América Latina.

Basicamente, trata-se de investigar o quanto os eleitores na região estão dispostos a abrir mão de direitos democráticos por uma ditadura que supostamente resolva os problemas do país.

Numa primeira etapa do trabalho com dados de pesquisa da Quaest, ela testou essa relação entre perda de direitos e resultados que supostamente uma ditadura poderia oferecer.

Perguntou-se aos entrevistados que tipo de direitos eles estariam dispostos a perder para obter benefícios em termos de melhor economia, mais segurança, menos corrupção, menos desordem etc., que um regime autoritário supostamente poderia proporcionar.

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A lista de quase uma dezena de "direitos a perder" incluiu itens como eleições livres e justas, liberdade de expressão, imprensa livre, direito de greve e devido processo legal.

O método da pesquisadora incluiu, ao perguntar sobre quanto valorizavam a democracia, dividir os respondentes entre um grupo em que se apresentou esse "trade-off" entre ditadura e direitos; e outro em que o mesmo trade-off não foi apresentado. A ideia é de que o grupo exposto à noção de que ditadura implica perda pessoal de diversos direitos acabaria tendo resultados mais simpáticos à democracia.

E de fato isso ocorreu, num grau que, se não chegou a mudar radicalmente a tendência das respostas, foi ainda assim relevante.

Interpretando os resultados, Campello observa que "lembrados sobre potenciais direitos perdidos em ditaduras, democratas 'relutantes' se tornam democratas 'convictos'".

Esse último efeito é mais forte entre os eleitores de Haddad e, curiosa e sintomaticamente, torna-se levemente negativo no caso dos eleitores de Bolsonaro. Para este último grupo, a parcela da amostra exposta ao trade-off entre ditadura e direitos mostrou-se ligeiramente mais simpático ao autoritarismo em média do que o grupo não exposto.

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Campello quer expandir para outros países e obter resultados mais detalhados dessa mesma linha de pesquisa. Um de seus temores, em relação à cena político-eleitoral da América Latina, na onda do fenômeno Bukele, é uma potencial perspectiva de deterioração democrática por governos punitivistas que acenem com mais segurança em troca de menos direitos civis.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras. (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 8/8/2023, terça-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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