BRASÍLIA - A Fundação Nacional do Índio (Funai) deu aval para o início das obras do linhão Manaus (AM) - Boa Vista (RR) sem definir um acordo básico e obrigatório do processo de licenciamento do projeto: quais serão as compensações socioambientais que os milhares de indígenas da região devem receber devido aos impactos irreversíveis que serão causados pelo empreendimento.
O Estadão teve acesso ao ofício que o presidente da Funai, Marcelo Xavier, encaminhou ao Ibama na tarde de segunda-feira, 27. No documento, ele dá autorização para que o projeto seja realizado e, em uma breve lista de condicionantes ambientais do projeto, afirma que uma das exigências será “implementar grupo de trabalho para monitoramento dos impactos potenciais e discussão da valoração da compensação acerca dos impactos irreversíveis”. Não há nenhuma informação sobre como funcionará esse grupo, como será composto e qual será sua agenda de trabalho.
Nesta quarta-feira, 29, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, esteve em Boa Vista e anunciou o início das obras. Segundo apurou o Estadão, houve pressão dentro do governo para que a licença fosse liberada e, assim, o ministro pudesse fazer o anúncio da obra, em alusão aos mil dias do governo Bolsonaro.
Por lei, é o Ibama o órgão responsável por liberar a licença ambiental que autoriza a obra. A Funai, porém, responde pela temática indígena e deve ser consultada por anuência ou não de um projeto, quando este envolve impacto a terras e vidas dos povos originários.
A definição dessas compensações, em qualquer empreendimento, deve ser apresentada antes da anuência do órgão. Isso ocorre pelo simples fato de que aquela definição pré-determinada é o que garante ao povo indígena o direito de ela ser ser fiscalizada e monitorada. Se o concessionário descumprir o acordo, pode ser autuado e até perder sua licença. No caso do linhão, porém, essas premissas deixam de existir, uma vez que aquilo que vier a ser determinado, a partir de agora, não poderá mais ser questionado.
O plano básico ambiental sobre os impactos aos indígenas aponta 37 impactos à terra indígena, dos quais 27 são irreversíveis e terão que ser devidamente indenizados e mitigados. Alguns se esgotam com a construção da obra, mas outros serão permanentes. É sobre esses impactos que não se sabe como será a compensação.
A Funai foi questionada sobre a falta de definição das compensações, mas não se manifestou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.
Reportagem publicada nesta quarta-feira, 29, pelo Estadão revela que o Ibama deu o aval para o início das obras, após receber o ofício da Funai. O linhão, também conhecido como “linhão de Tucuruí”, ficou na gaveta do Ministério de Minas e Energia por uma década, depois de ser leiloado, em setembro de 2011. O motivo da paralisação foi o impacto que a linha impõe à terra indígena Waimiri Atroari, onde hoje vivem mais de 2.300 indígenas. Dos 720 km da linha de transmissão, 122 quilômetros passam no meio de suas terras. Os indígenas não se posicionavam contra a obra de energia, mas exigiam ser consultados. Nesses dez anos, os Kinja cobraram o direito constitucional de serem consultados.
Harilson Araújo, advogado da Associação Comunidade Waimiri Atroari, não tinha conhecimento até terça-feira, 28, de que a autorização para início da obra seria emitida. “Apresentamos uma proposta de compensação das condicionantes do povo Waimiri à Transnorte Energia, mas ainda não tivemos nenhuma confirmação sobre nada”, disse.
Em seu ofício de apenas quatro páginas, o presidente da Funai afirma que “o processo de licenciamento ambiental, incluindo o processo de consulta, foi devidamente realizado, sendo um exemplo de superação na questão de se conciliar o processo de licenciamento ambiental” com a manifestação da Funai, como interveniente, e a consulta aos indígenas nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Dessa forma, manifesto anuência da Funai para emissão da Licença de Instalação para o empreendimento LT Manaus Boavista”, declara Marcelo Xavier.
Sobre as condicionantes ambientais, seu ofício afirma que a concessionária Transnorte Energia, dona projeto, deverá apresentar à comunidade Waimiri Atroari, “com a devida antecedência, para as providências necessárias, o Plano de Obras da Linha no trecho em que esta corta a respectiva área indígena”.
O plano deve conter metodologia de construção, cronograma dos trabalhos, acompanhamento da obra por parte do povo kinja, regime e horário de trabalho no interior da terra indígena e cuidados relacionados à saúde, meio ambiente e acesso à terra indígena.
O documento pede a criação de barreiras nos acessos às torres de transmissão, disponibilização da madeira retirada para uso da comunidade indígena; instalação de acampamentos fora da terra indígena e permanência do pessoal da obra dentro da terra indígena apenas durante o período diurno, em períodos previamente combinados.
Os 2,3 mil indígenas da terra Waimiri Atroari vivem em 82 aldeias distribuídas na região. Por vários anos, a Funai esteve ao lado do povo indígena na avaliação do projeto, em busca de respostas e estudos técnicos sobre a viabilidade da obra. Na gestão atual do órgão, porém, seu posicionamento se inverteu e a fundação passou a atuar como instrumento de pressão para autorizar o empreendimento.
Em postura de afronta ao povo indígena e servidores do próprio órgão, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, chegou a transformar o processo de licenciamento em investigação policial. Em maio, Xavier acionou a Polícia Federal, que abriu inquérito para investigar lideranças indígenas e nove servidores da própria Funai, sob a acusação de que atuariam para colocar supostas “barreiras e entraves à aprovação” do projeto.
O representante do povo Kinja não mencionou um valor necessário para financiar as condições levantadas pelos indígenas. Em 2019, quando o assunto ainda estava longe de uma decisão, a Transnorte Energia chegou a apresentar aos indígenas um conjunto de propostas que custariam, no total, R$ 49,6 milhões à empresa, a preços da época. Perguntado se o pleito atual seria de um valor aproximado, Araújo disse que está “muito acima disso”, sem mencionar mais detalhes. “Não falamos sobre valores, mas certamente está bem acima disso, pelo menos dez vezes esse valor.”
Nesta quarta-feira, 29, ao tomar conhecimento da decisão do Ibama e Funai pela reportagem, o advogado Harilson Araújo declarou que vai acionar o Ministério Público Federal e que tomará as medidas judiciais cabíveis no caso. “Não tem acordo se não houver nenhum tipo de formalização de aceitação da proposta pelos indígenas. Estão jogando todo processo por água abaixo. Vamos mover ação e notificar o MPF”, disse o advogado do povo Kinja.