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O calote sai das sombras

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Por Redação
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A decisão européia de incluir uma já chamada "cláusula do calote", nos programas de socorro a países quebrados, com base nos recursos do novo Mecanismo de Estabilidade Financeira, vai dar muito o que falar. Por ela, a partir de 2013, antes que o resgate de um governo endividado seja providenciado, os bancos credores teriam de aceitar uma reestruturação da dívida.

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Ainda não está muito claro como o mecanismo vai operar, mas, desde já, as resistências a ele não são poucas. A ideia, que tem a assinatura da chanceler alemã, Angela Merkel, foi recebida com críticas pelo presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, e já levou uma trombada do presidente francês, Nicolas Sarkozy. A "cláusula do calote" foi concebida por Merkel para ser aplicada automaticamente, mas Sarkozy conseguiu que a deflagração do mecanismo dependesse de análise caso a caso.

A novidade da exigência de reestruturação de dívidas, nos casos do estouro de bolhas com impacto desarranjador nas contas públicas, retira o calote das sombras financeiras, reduzindo a hipocrisia no modo de funcionar dos bancos e credores, sobretudo diante das dívidas soberanas. É fácil, por isso, prever que, até se consolidar, se isso de fato vier a ocorrer, o esforço para derrubar a "regra Merkel" ou, pelo menos, desfigurá-la, será tenaz.

Pode-se falar em hipocrisia dos sistemas financeiros porque, se, de um lado, a sombra dos calotes está sempre presente na formação dos custos dos financiamentos, de outro, sai de fininho de cena quando a inadimplência ganha contornos concretos. Essa é uma história antiga, com enredo recorrente.

Enquanto o FMI teve fôlego para socorrer economias à beira de colapsos - normalmente as emergentes -, os governos sufocados por dívidas foram obrigados a engolir empréstimos compensatórios, arranjados e monitorados pela instituição. Isso valeu da década de 70, a partir das crises dos petrodólares, até por volta de 2005, período em que o FMI ficou conhecido, muito a propósito, como o "gendarme das finanças internacionais".  

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Esses empréstimos eram assumidos pelos governos, com a contrapartida do cumprimento de metas altamente restritivas do crescimento econômico e de ações de inclusão social, propiciadas por políticas (e gastos) públicos. O dinheiro era repassado aos credores, evitando-se assim os calotes. No fim, restava aos governos e aos cidadãos, principalmente os mais pobres, arcarem com o ônus dos ajustes, em geral draconianos.

O Brasil foi uma vítima recorrente nesse período. Cansamos de acompanhar autoridades econômicas passando o pires em Washington, no caixote cinza da sede do FMI, na rua 19ª. Voltavam com os chamados "empréstimos jumbo" e acordos para a realização de reformas liberalizantes e cumprimento de pesadas metas de superávit fiscal e redução da dívida pública.

Visitas periódicas de missões do FMI, para avaliar e cobrar, com mão de ferro, o cumprimento dos acordos, tornaram-se corriqueiras, embora nunca deixassem de ser tensas. A maleta executiva da sisuda chilena Ana Maria Jul, chefe das primeiras missões, e os vestidos rodados e floridos da italiana Teresa Ter-Minassian, chefe das últimas missões, ficaram famosos.

Os calotes, em todos esses episódios, flutuavam nas sombras. Quando não havia como evitar a moratória, o trauma que acompanhava a decisão marcava o país como inconfiável por largos períodos. Uma complicada e paciente negociação, conduzida pelo futuro ministro da Fazenda, Pedro Malan, reestruturou as dívidas bloqueadas pela moratória unilateral de 1987 e regularizou o relacionamento do Brasil com bancos credores em fins de 1992. Mas, a memória do período continua traumática.

Com o patrocínio da durona Angela Merkel, a ideia de institucionalizar dos calotes - que, afinal, não passam da face refletida da ganância e da irresponsabilidade de bancos e investidores - entrou na roda. Descobrir o que fazer com os riscos sistêmicos que a proposta traz embutidos é o desafio.

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É certo, de todo modo, que o sistema de governança financeira mundial não pode continuar como está. Ao punir governos por falhas na supervisão bancária, o sistema em vigor, na verdade, pune duramente a população, precarizando a rede de proteção social provida pelos tributos recolhidos dos próprios cidadãos. Mais do que isso, promove e consolida um insustentável "risco moral", premiando, em vez de punir, a ganância especulativa.

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