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'Na tempestade, recolha as velas e deixe o vento passar'

Presidente do Banco Central na crise de 2008 diz que, neste momento, o Brasil precisa ter cautela e transmitir confiança

Por Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum
Atualização:

O ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, diz que o pior momento da crise de 2008 foi o colapso do mercado de crédito internacional, que secou as fontes de financiamento até para a venda de carros no Brasil. Nesta entrevista sobre os cinco anos da quebra do Lehman Brothers, Meirelles diz que o mercado financeiro internacional hoje é mais seguro, que o Brasil passa por um momento de ajuste e precisa de políticas monetária e fiscal claras. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Quando ficou claro que a crise tinha proporções similares ao crash de 1929?

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A queda do Lehman Brothers foi o alerta. Mas isso ficou claro quando houve um colapso nas linhas internacionais de crédito para o Brasil. Elas representavam cerca 20% do crédito no País e isso significava uma contração grande. Isso veio conjugado com remessas importantes, seja de empresas multinacionais, que passaram a concentrar caixa na matriz, seja fundos que começaram a ter saques para repatriar capital. Configurou-se uma crise de crédito em dólares similar ao que tínhamos visto no pior da crise de 29 pelos dados disponíveis, que não são muitos no Brasil. O que fizemos desde o início foi atacar diretamente os canais de produção e distribuição da crise - e não trabalhar nas consequências da crise. Por isso a estratégia foi tão bem sucedida.

O que os senhores fizeram?

O primeiro movimento foi o anúncio dos empréstimos de reservas (internacionais) para substituir os empréstimos e os bonds (títulos de dívida) que estavam vencendo e não eram renovados. Note bem: não era um mecanismo de estímulo clássico emprestar reservas para os bancos, que emprestavam para as empresas e outros bancos que não conseguiam rolar suas dívidas. Foi uma intervenção direta no canal de transmissão da crise.

Qual foi a lição pessoal que o sr. tirou da crise?

Que é preciso olhar, analisar e tomar uma decisão baseada na sua experiência e avaliação do que pode dar certo. Hoje, as políticas de liquidez (injeção de recursos no mercado pelo Banco Central) são altamente populares no mundo. Quando fizemos no Brasil, fomos os primeiros. Naquela época exigiu ousadia e coragem. Você tem de fazer o que acredita ser certo e não aquilo que muitas vezes é o mais confortável, o que está todo mundo fazendo. De vez em quando tem de assumir o risco de estar errado. Felizmente estávamos certos. Mas, se estivéssemos errados, estaríamos errados sozinhos.

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Outra decisão difícil diz respeito aos derivativos (produtos financeiros baseados em ativos reais). Na época Sadia e Aracruz quebraram e apareceram e-mails de empresas pedindo ajuda para conter a alta do dólar. Mas o BC não fez intervenção para preservar o câmbio flutuante. Vendo os problemas que as empresas passaram, o sr. faria diferente?

Não. Uma intervenção prematura do BC poderia ser pior. O Brasil corria o risco de ter o mesmo problema que a Rússia: queimar reservas. O mercado vê o quanto o país está perdendo reservas. E isso pode ser um sinal de fraqueza. Podíamos quebrar o País e as empresas. Primeiro organizamos a base jurídica e técnica e esperamos o momento certo, inclusive para dimensionar o tamanho do problema, o que foi outra dificuldade. Estabeleci conversações bilaterais com autoridades regulatórias no mundo todo para ter acesso a informações. Agimos de forma cirúrgica. Entramos no mercado de derivativos de maneira forte e decisiva, com as condições de crédito já reestabelecidas e a situação se resolveu rapidamente, sem crise sistêmica.

De quem seria a culpa por um problema tão grave com as empresas brasileiras?

Foi falta de controles internos. Algo que começou como um movimento de proteção (operações de derivativos) e passou a ser algo para fazer lucro, assumindo riscos que não estavam bem avaliados.

De quem seria a responsabilidade para evitar isso?

Em última análise, do conselho (de administração) das empresas. Elas não são reguladas pelo BC. Existem normas da Comissão de Valores Mobiliários que obrigam as companhias de capital aberto a reportarem as posições de derivativos. Em Basileia, defendi que tivéssemos acesso à exposição total das empresas brasileiras no mundo, independente de serem subsidiárias, mas a medida não passou por causa de questões de soberania dos países e sigilo bancário.

O senhor foi pressionado pelo presidente Lula a cortar juros?

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Não. O que houve foi muita pressão, não do presidente, mas de muitos setores em dezembro de 2008 quando o BC não cortou os juros. Existe um erro conceitual nessa crítica. Ela ignora os canais de transmissão de política monetária. Existe uma frase famosa de um presidente de um Banco Central europeu: nesta crise a política monetária perdeu ação, porque os seus canais foram interrompidos. Quando o crédito esta paralisado, baixar a taxa de juros é ineficaz. O problema era a falta de liquidez. E o BC atacou isso. Outro ponto que hoje a experiência mostra: no Brasil também havia o problema do câmbio. Baixar a Selic no momento da crise dos derivativos iria apenas financiar o especulador contra o real. Quando os canais de política monetária foram restaurados, o mercado cambial voltou à normalidade. O Brasil saiu da crise rapidamente, melhor que outros países e mais forte do que quando entrou.

Passados cinco anos, o senhor diria que o sistema financeiro global está mais seguro?

Certamente. Hoje todas as grandes instituições estão reguladas e fiscalizadas por autoridades dos diversos países. As bases de capital estão muito mais sólidas e rígidas. Num primeiro momento, houve uma gritaria enorme dos bancos dizendo que haveria uma queda de crescimento dos países porque os BCs estavam impedindo os bancos de correrem o risco necessário. Os BCs fizeram estudos e mostravam que, num primeiro momento isso ocorreria, mas não no ciclo inteiro. Os prejuízos causados pelas crises do ponto de vista de PIB dos países eram maiores do que as possíveis perdas com regras rígidas.

Em um artigo recente na Folha de S. Paulo, o sr. diz que "o Brasil entrou nesta crise com bons fundamentos econômicos. Política monetária equilibrada, o país crescendo a taxas elevadas, o mercado consumidor forte e em expansão, situação externa também era saudável. O crescimento robusto atraía investimentos estrangeiros em volumes maiores que o nosso déficit externo". Hoje, quase tudo é o contrário. O que aconteceria com o País se a crise fosse hoje?

É você que está dizendo que é o contrário. Difícil prever o que aconteceria. Dependeria da crise e das medidas.

O País está mais vulnerável?

É uma frase muito forte dizer que o Brasil está mais vulnerável. O consumo doméstico continua forte. O País tem reservas grandes e um sistema financeiro com regulação sólida. Hoje as condições são diferentes. Houve um aumento de custos de trabalho e de logística, que diminuíram a capacidade competitiva do País, e a piora das condições de conta corrente (déficit nas contas externas). As incertezas e o menor crescimento econômico diminuíram o investimento estrangeiro direto (em produção) e ele não acompanhou o crescimento da conta corrente. Passamos a ter uma vulnerabilidade. A competitividade externa está sendo corrigida pela taxa de câmbio. O Brasil está em processo de ajuste.

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A recuperação americana tem pressionado o câmbio. O processo americano pode fazer o dólar subir mais?

Vai depender da redução de liquidez. Por enquanto, o Fed (banco central americano) não sinalizou que vai pisar no breque. Vai diminuir a força sobre o acelerador. Em certo momento, pisará no breque. Aí chegará a hora da verdade. Já houve momentos em que a inflexão de política monetária foi menor, mas gerou grande turbulência - 1994 é um exemplo. Gerou uma crise em cadeia, no México, Brasil, Coreia, Tailândia, Rússia e Argentina. As autoridades americanas estão muito conscientes. É um momento particularmente incerto para previsões. Estamos às vésperas da reunião do Fed, que vai iniciar ou não o alívio no acelerador. Há uma coisa mais importante: o fim do mandato do Ben Bernanke. Quem será o novo chairman? Quais são suas visões?

O dólar atual é suficiente para corrigir o déficit externo?

É prematuro dizer. O câmbio é uma das variáveis mais difíceis de prever. Há muita volatilidade. Inicialmente o Fed anunciou o tapering (que iria reduzir os estímulos à economia) e o mercado reagiu. Mas, no momento seguinte, alguns dados americanos e declarações do Fed indicaram que não é preciso ficar tão agitado. Por outro lado, o Banco Central brasileiro anuncia medidas de intervenção nos mercados, com swaps cambiais (operações equivalentes a vendas de dólares no mercado futuro), em volumes expressivos. Há muita incerteza. A atitude mais realista é aguardar não só o equilíbrio do mercado, mas também o efeito disso sobre a balança comercial e os fluxos de investimentos para ver onde vai se estabilizar. E deve-se fazer isso sem esquecer aquela pergunta: para que existe o câmbio? A primeira vez que ouvi isto foi numa frase de Alan Greenspan, num jantar, há muitos anos. Ele perguntou para economistas e presidentes de Banco Central qual era finalidade dos mercados de câmbio. Cada especialista deu a sua explicação. Aí ele falou: é para manter a humildade dos economistas sob controle. 'Keep the economists humble'.

O que o Brasil deve fazer nesta situação, com pressão internacional da retirada dos estímulos do Fed, e inflação alta aqui?

É importante transmitir uma política clara. Basicamente é importante transmitir confiança. Que se tenha diretrizes fiscais claras sobre o que vai se fazer e o porquê. A política monetária deve ter clareza. As políticas de liquidez também, como é o caso do swap. E, depois, ser consistente na implementação. Usando as imagens dos veleiros antigos, quando há aproximação de tempestades, o melhor é recolher um pouco as velas, reforçar o barco, estar preparado para deixar o vento passar e ter uma direção muito clara. Não pode fazer muitas mudanças. É importante, em resumo, ter confiança e transmitir confiança.

Está difícil entender os resultados da economia hoje. O que está acontecendo?

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A aplicação e a retirada de estímulos na economia introduz muita volatilidade em qualquer lugar do mundo. E agora existem essas políticas específicas, pontuais, injeções de estímulos para diferentes setores. Por exemplo: você faz uma política para eletrodomésticos e, então, há uma subida forte na venda de eletrodomésticos que surpreende os analistas. Mas fica mais difícil para que todas convirjam para a mesma previsão, planejamento de estoques e de vendas. Existem sempre companhias que produziram em excesso e tem que liquidar estoques. Que produziram pouco e saem correndo para produzir. O segredo é dar incentivos, se necessários, o mais uniformes possíveis para gerar o mínimo possível de volatilidade, mas sabendo que vai gerar de qualquer maneira.

Em outro artigo, o senhor fala que a crise ocorreu porque os mercados operavam livremente, mas que a lição é outra: que governos não devem intervir e direcionar créditos segundo políticas públicas, porque isso pode criar grandes distorções nos mercados. Este trecho instigou comentários do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, também por meio de um artigo. O senhor podia explicar melhor essa lição?

Quando eu dirigia uma instituição financeira americana, no início dos anos 90, o governo criou programas de financiamento que visavam a conceder créditos para minorias, como incentivos para que os bancos emprestassem no que já era chamado de subprime - crédito de segunda linha, com menor capacidade de pagamento. Já existiam alguns incentivos fiscais para esse tipo de crédito. Quando esse processo como um todo foi posto em andamento, os novos incentivos se juntaram aos incentivos já existentes para a aquisição da casa própria, o que fez com o que o mercado crescesse rapidamente. Isso se conjugou com falhas de regulação. Nos Estados Unidos, uma série de instituições estava fora do sistema de regulação. O Lehman Brothers não tinha regulação nem fiscalização. E quando um mercado cresce de maneira veloz, adquire dinâmica própria. A lição é: deve-se evitar direcionar crédito por política pública - emprestar para lá e para cá - e ao mesmo tempo é preciso evitar a política regulatória falha, com diversas janelas em que os bancos possam se expandir.

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