O ano de 2020 foi um ano, na partida, promissor. Mas acabou por se revelar terrivelmente frustrante e, além disso, surpreendentemente trágico. As expectativas positivas se iniciaram com uma agenda legislativa cheia e a possibilidade de avanços na tramitação de três Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) apresentadas ainda ao fim de 2019. Batizado pelo governo de Plano Mais Brasil, o conjunto de iniciativas de transformação do Estado se assentava nas PECs emergencial, dos fundos públicos e do pacto federativo e visava a estabelecer mecanismos mais eficientes de gestão nas três esferas federativas. Ao longo do ano ainda tivemos a retomada das discussões sobre a PEC 45/2019, da reforma tributária e, quase no apagar das luzes – que no Legislativo acontece bem antes do fim do ano –, a apresentação da PEC 32/2020, da reforma administrativa. Mas nada aconteceu e morremos na praia. E não foi só pela pandemia.
Para um observador desavisado era, finalmente, o resgate de uma agenda de reformas que chegava tarde a um país que precisa urgentemente se reinventar. A alguns um pouco mais atentos (e otimistas), era um sinal de bom agouro. Certamente nem tudo avançaria, mas ao menos se poderia, quem sabe, inverter algumas das inúmeras engrenagens enferrujadas e arcaicas que mantêm girando a roda de desigualdades e desajustes do Estado brasileiro. Era o caso das PECs do pacto federativo, que delega aos Estados e municípios seu quinhão de responsabilidade no necessário ajuste fiscal, e a da reforma administrativa, cujo objetivo louvável é o de melhorar a qualidade do serviço público. Embora picotada pelo corporativismo atávico do presidente da República e com um ponto de partida controverso, foi o sinal para que o debate enfim se iniciasse. Mas, para os mais céticos, esse congestionamento de PECs não passava de um conjunto de balões de ensaio que se perderiam em articulações políticas malfeitas, troca-trocas usuais de uma base esfacelada e acabariam em nada, como de fato acabou. Ou não.
No caso da reforma administrativa, vale uma lupa. Veio ambiciosa, mas paradoxalmente tímida ao eliminar o que não poderia excluir. Começa pelo que não deveria (a estabilidade), mira no que precisa acabar (as imoralidades presentes no topo dos três Poderes), finca as bases do que precisa ser (meritocracia), mas peca ao excluir quem deveria priorizar (as castas de servidores, cheias de privilégios). Deixa para uma segunda etapa o que está mais à mão, que é o pilar da reforma: a avaliação de desempenho no serviço público. Nada que não se possa corrigir, a duras penas, no Congresso. Dará trabalho, mas essa tem de ser a luta de 2021.
Nessa batalha, começamos bem no Congresso, com uma Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, presidida pelo deputado Tiago Mitraud e que conta com parlamentares do calibre dos senadores Katia Abreu e Antonio Anastasia como vice-presidentes. Temos ainda uma Frente Parlamentar pela Defesa do Serviço Público, presidida pelo deputado Prof. Israel, que faz o legítimo contrapeso, mas também defende a necessidade de se avançar nesse debate. E já há consensos formados.
Há de se começar por eliminar os dois pecados capitais da PEC 32: a exclusão dos servidores atuais e a dos membros de Poderes, em particular os do Judiciário e do Ministério Público, que são os atuais detentores de privilégios inaceitáveis como as férias de 60 dias, a aposentadoria como punição, as revisões salariais retroativas, além das injustificáveis (e generalizadas) promoções e progressões automáticas e demais benefícios temporais. Há outros pontos a serem corrigidos, como a excessiva autonomia administrativa proposta para o Executivo federal e a amplitude ainda sem critérios para a nomeação de cargos de confiança. Tudo isso ao alcance do Congresso Nacional, desde que nossos parlamentares não se percam no labirinto que é a discussão da estabilidade funcional.
Mas, para isso, há de se focar nos pontos que independem do avanço na tramitação da PEC 32. Em particular na regulamentação da demissão do servidor estável por baixo desempenho e na sua avaliação periódica obrigatória – absoluta e relativa, por meio de curva forçada. Esses são os pilares de uma imprescindível reforma administrativa e podem avançar paralelamente por meio de projetos de lei complementar. Consenso até entre as frentes parlamentares que debatem a reforma, nenhum dos dois depende da aprovação da PEC para serem apresentados, discutidos e aprovados. Mas dependem do bom senso do presidente da República. Infelizmente.
Essa é a agenda que esperamos ver caminhar em 2021. Uma agenda de modernidade do Estado, de compromisso com a sociedade e com o servidor público e que converse com a necessidade de um serviço público de melhor qualidade, condição necessária para ganhos de produtividade e eficiência. Uma agenda que contribua para o necessário e urgente combate às desigualdades sociais e para o avanço do Brasil como uma nação mais justa e igualitária. Uma agenda que coloque a burocracia estatal à serviço do cidadão e em favor do desenvolvimento econômico e social, rompendo com o patrimonialismo e a injustiça social que se tornaram característicos da atuação do nosso Estado. Mas isso tudo só acontecerá se enfrentarmos uma reforma administrativa que transforme a máquina pública operacional, financeira e culturalmente. Não foi em 2020. Mas, como no extraordinário AmarElo, de Emicida, temos de entender que é tudo pra ontem e que Belchior tinha razão: “Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”!
Bem-vindo 2021!
* ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA