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Como a madeira e a restauração florestal podem contribuir para descarbonizar a construção civil

Considerando que as indústrias de concreto e aço são carbono-intensivas, dificilmente a construção civil conseguirá reduzir ou zerar suas emissões sem o amplo emprego da madeira

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Foto do author Roberto Waack
Por Roberto Waack, Marcelo Aflalo e Beatriz Lutz

“É pau, é pedra, é o fim do caminho. É um resto de toco, é um pouco sozinho. É um caco de vidro, é a vida, é o sol. É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol. É peroba-do-campo, é o nó da madeira. Caingá, candeia, é o matita-pereira. É madeira de vento, tombo da ribanceira. É o mistério profundo, é o queira ou não queira.”

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Os versos do genial Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim em Águas de Março entoam mais que as reminiscências de seu refúgio no sítio Poço Fundo, um resto de mato — ou de Mata Atlântica — na região serrana do Rio. Construídas em moto-contínuo, letra e música discorrem como um fluxo de consciência do compositor, feito redemoinhos de água que vão e voltam, mostrando a antítese entre os encantamentos da vida e as suas sombras.

Os altos e baixos que Tom Jobim evoca na canção estão também no mundo de contradições do Brasil, dono da maior biodiversidade do planeta, mas que é o principal player do mundo florestal com espécies exóticas. A despeito da altíssima qualidade e variedade da madeira das florestas brasileiras, a maior parte é extraída para finalidades de reduzido valor agregado, como lenha para as indústrias siderúrgica e cimentícia. Além disso, a riqueza de um país potência em florestas se perde na exploração ilegal.

Diante da emergência das agendas de mitigação e de adaptação à mudança do clima, a madeira entrou no rol dos chamados New Building Materials Foto: Werther Santana/Estadão

As contraposições não param por aí. Apesar de as mais sofisticadas casas de campo no País buscarem na madeira a beleza arquitetônica, a funcionalidade e o conforto térmico e acústico, o setor de construção civil vale-se essencialmente de concreto e aço quando opera em larga escala.

Não é assim em países de menor potencial florestal que o brasileiro, como os Estados Unidos, onde 93% das casas são feitas com madeira em sua estrutura e as edificações de até 12 andares — altura ideal para construções inteiramente em madeira — representam 85% das construções.

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Lá, a necessidade de cortar emissões de carbono tem levado empresas a buscarem a madeira como solução. É o caso da Microsoft, que projetou modernos data centers na Virgínia do Norte, utilizando um produto engenheirado, a madeira laminada cruzada (CLT). Ao combinar o uso com aço e concreto, a big tech informa que reduzirá em 35% as emissões em relação à construção convencional e em 65% com relação ao concreto pré-moldado.

No Reino Unido, o setor de fabricação de madeira estrutural pode dobrar sua produção para atingir 100 mil casas por ano, contribuindo com 33% da meta do governo trabalhista, que consiste em construir 1,5 milhão de casas nos próximos cinco anos. Enquanto isso, a Suécia está construindo a “Stockholm Wood City”, descrita como o maior projeto de madeira engenheirada do mundo.

Hoje, o setor de construção responde globalmente por 37% das emissões relacionadas à energia e 21% das emissões totais. Estima-se que a quantidade de edifícios dobre em todo o mundo até 2050, adicionando até 70 Gt de carbono se métodos de construção tradicionais forem usados.

Diante da emergência das agendas de mitigação e de adaptação à mudança do clima, a madeira entrou no rol dos chamados New Building Materials, embora seu uso na construção remonte a milênios atrás. Resgatar o uso da madeira nas estruturas e grandes elementos de uma obra é um passo importante para fixar grandes volumes do carbono sequestrado pelas árvores. Considerando que as indústrias de concreto e aço são carbono-intensivas, dificilmente a construção civil conseguirá reduzir ou zerar suas emissões sem o amplo emprego da madeira.

Mas os ganhos vão bem além dos climáticos, pois o uso da madeira se atrela a outra agenda extremamente relevante: a da restauração florestal. Neste campo, os benefícios se dão em série, a começar da valorização fundiária. O manejo adequado do terreno é capaz não só de recuperar áreas degradadas, como aproveitar aquelas que estão subutilizadas e ainda garantir a oferta de água limpa e a estabilidade do solo.

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Além disso, uma floresta restaurada gera créditos atrelados a carbono e biodiversidade, e pode ainda evoluir para uma agrofloresta, originando produtos como madeira de alto valor agregado, frutas, óleos e castanhas.

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A diversidade que é intrínseca aos sistemas agroflorestais conta a favor, pois os ciclos produtivos são complementares e há uma sinergia entre as culturas. Quanto mais diversa for a atividade de uma agrofloresta, maior a diversificação de risco, a resiliência e as possibilidades de ganhos em múltiplos mercados ao longo do tempo.

Alguns atores financeiros já detectaram essas oportunidades. Por exemplo, um fundo de investimentos voltado à agrofloresta para recuperação de ecossistemas degradados calculou que o retorno é capaz de superar, em dólar, os 15% ao ano. Estima-se que a taxa possa ser ainda maior, a depender de uma concertação afinada entre o setor privado e o público, a quem cabe definir o arcabouço jurídico e fiscal, e de avanços nas pesquisas científicas sobre técnicas produtivas — o que, no caso do desenvolvimento de espécies exóticas como o eucalipto, foi fundamental para o sucesso desse mercado.

A consolidação desses fatores será crucial para garantir a oferta firme de madeira em larga escala e, assim, proporcionar a previsibilidade do seu uso na construção civil. Para que haja matéria-prima suficiente, é preciso começar esse trabalho o quanto antes, conectando os pontos entre oferta e demanda.

Nesse sentido, algumas iniciativas estão em curso, como a realização, em São Paulo, da Reunião Global de Construção em Madeira. Serão quatro dias de reunião fechada com especialistas do mundo todo para produzir recomendações globais para o mercado da construção em madeira, e três dias de evento aberto ao público, entre 12 e 14 de março. O objetivo será conectar a indústria da madeira e a arquitetura brasileira com nomes mundialmente conhecidos, definindo um roteiro sobre seu uso na construção. Os resultados do evento serão apresentados em novembro, durante a COP-30 em Belém.

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Como cantava o mestre, ao fechar Águas de Março, é a promessa de vida no teu coração.

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