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Um empresário surpreendente

Por José Eduardo Faria
Atualização:

Mais do que engenheiro e executivo bem-sucedido, Olavo Setubal foi uma personalidade surpreendente, uma figura humana muito maior do que sua obra empresarial. O que o levou, após se retirar da vida pública, a ser permanentemente consultado por muitos de seus antigos adversários políticos? Por que se tornou interlocutor de defensores de valores e teses opostas às suas? De que modo entender encontros e almoços que manteve, nos últimos anos, com pessoas tão discrepantes entre si, como D. Rockefeller e Samuel P. Guimarães, Raúl Alfonsín e José Serra, Mário Covas e Mário Soares, Frei Betto e FHC, Carlos Slim e João Pedro Stédile, com quem discutiu dívida externa, reforma agrária e... receitas de compotas de frutas do MST? Dotado de sólida formação cultural, Setubal soube ser um homem de seu tempo. Sua trajetória pessoal, familiar e profissional foi trilhada em períodos de grandes transformações, em que o Brasil deixou de ser exportador de produtos primários para se converter em economia industrial. A infância foi vivida entre os anos 20 e 30 do século 20, numa família tradicional e conservadora. A adolescência e a juventude se deram quando o nazi-fascismo se afirmava sombriamente na Europa e o liberalismo econômico era criticado por propostas de justiça distributiva inspiradas na Rerum Novarum, a encíclica do Papa Leão XIII sobre a condição operária. Tudo isso marcou a formação de Setubal, o que pode ser visto pela amizade que mais tarde manteria com os sacerdotes canadenses liderados pelo padre Charbonneau, no Colégio Santa Cruz, e pelo perfil dos técnicos que chamou para assessorá-lo na Prefeitura, muitos influenciados pelo padre Lebret, urbanista e dominicano, ou por P. Teilhard de Chardin, paleontólogo e jesuíta. Os tempos de vida universitária coincidiram com um período de ações governamentais favoráveis à intervenção do Estado na economia, com o objetivo de orientar investimentos a setores estratégicos e a transferência de renda entre setores produtivos, grupos sociais e regiões. O que marcou a sensibilidade política de jovens daquele período, como Setubal, foi a percepção de que os obstáculos ao progresso não decorriam de fatalidades nem eram irremovíveis. Muitos daquela geração viram o desenvolvimento como fruto de uma ação deliberada, de uma política, decorrendo daí a importância da ação do Estado, a quem caberia a responsabilidade de formulá-la. Em Setubal, essa percepção foi aguçada por sua opção pela engenharia, num contexto cultural-familiar que valorizava o direito, por oferecer maior segurança profissional. O debate travado por Eugênio Gudin e Roberto Simonsen no Conselho Federal de Comércio Exterior, entre 1944 e 1945, o marcou de tal forma que o levou a uma situação paradoxal: apesar da aversão política a Getúlio, traço marcante entre os colegas de geração e classe social, ele compreendeu o alcance da experiência de industrialização do varguismo. Convencido de que o futuro brasileiro seria determinado pelo desempenho da indústria, Setubal deixou o IPT, onde era técnico, e a Poli, onde era professor-assistente, e mobilizou conhecimento e US$ 10 mil recebidos como presente de casamento para se lançar como pequeno empreendedor no setor metalúrgico, fundando a Deca, hoje integrada à Duratex. Tendo o País vencido a primeira etapa da revolução industrial com a consolidação da indústria de bens de consumo durável, a partir dos anos 60 surgiram os desafios para a etapa seguinte, que envolviam a criação de um sistema financeiro para oferecer crédito a baixo custo e a longo prazo às empresas e a expansão do campo de operações dos bancos comerciais, para atender à demanda de crédito de quem entrava no mercado consumidor. Setubal soube compreender esses desafios, o que foi decisivo para a decolagem do acanhado banco que então administrava. "O novo não nasce do velho, mas brota ao seu lado e o supera", disse-me várias vezes, interpretando o processo schumpeteriano de destruição criadora que converteu duas modestas casas bancárias, o Federal de Crédito e a Casa Bancária Marília, no Itaú e no Bradesco de hoje. Setubal também repetia a mesma frase sempre que se lembrava de Amador Aguiar, a quem sempre respeitou como concorrente, enquanto os banqueiros tradicionais iam sendo suplantados por não terem sabido acompanhar os ciclos econômicos. A mesma industrialização foi responsável por uma alteração radical do perfil geo-ocupacional do País, levando ao advento das grandes regiões metropolitanas. Esse é o período em que Setubal, nomeado prefeito de São Paulo num momento de expansão da sociedade civil e de movimentos sociais, teve de aprender a dialogar com seus líderes, entre os quais uma assistente social vinda da Paraíba, Luiza Erundina, e o líder de oposição na Câmara, Flávio Bierrenbach, eleito por advogados e católicos de esquerda. Os problemas sociais causados pela queda no ritmo de crescimento econômico e a erosão da ditadura levaram alguns setores sociais a uma reflexão mais abrangente sobre o futuro do País. A criação do PT é um dos desdobramentos desse processo. Outro desdobramento é a mobilização de empresários, como A. Ermírio, P. Villares, J. Gerdau e Setubal, na defesa de um regime democrático e de uma economia mais eficiente e eqüitativa. A idéia do grupo era "desfatalizar" os obstáculos à retomada do crescimento econômico, entendendo os processos sociais e políticos como possibilidades abertas à discussão. Tendo passado ao largo do envolvimento com esquemas de repressão no tempo da ditadura, esses empresários tinham autoridade moral para propor a setores organizados da sociedade um diálogo sobre reformas econômicas e sociais. Na época, o grupo assinou um documento no qual afirmava que, sem distribuição de renda e eqüidade social, a economia de mercado não vicejaria. Hoje o documento parece um episódio "menor" comparado a um fato "maior", a criação do PT. Mas teve sua importância e foi um dos motivos que levaram Setubal a ingressar na política. Após a redemocratização, Setubal enfrentou as três frentes de sua maturidade. A primeira foi a partidária, na qual obteve sucesso, ao aliar-se com Tancredo, e amargou duas derrotas, a natimorta discussão em torno de seu nome como alternativa à sucessão de Geisel e a campanha para o governo estadual, em 1986. A segunda frente foi a diplomática, com a indicação para o Ministério das Relações Exteriores no primeiro governo pós-ditatorial. A expectativa era ser ministro da Fazenda. "Do Itamaraty, só conheço o prédio", disse-me num misto de frustração e fascínio pelo desafio. O convite foi feito na véspera de carnaval e, na quarta-feira de cinzas, já definira as premissas de uma gestão que, por valorizar oportunidades econômicas para o País e a obtenção de resultados mais concretos do que simbólicos, suscitou duras críticas de muitos que a aplaudiriam mais à frente. Na época, diversas vezes o surpreendi em Brasília lendo autores como Marx e Gramsci, Celso Furtado e Chico de Oliveira. "Tenho de entender a cabeça de meus críticos", dizia, articulando argumentos para defender as prioridades que definiu para a política externa. Só aumentando as exportações, abrindo novos mercados e assegurando financiamentos que permitam taxas de crescimento econômico superiores à expansão da taxa demográfica, o País viabilizará um projeto de desenvolvimento capaz de gerar riquezas e emprego - essa foi a diretriz de sua gestão. "Potencial de crescimento e tamanho do PIB é que são condições de poder", afirmava, fazendo um jogo de palavras a partir da premissa do Barão do Rio Branco, para quem território era poder. De sua passagem pela chancelaria resultaram as bases para a criação do Mercosul, a conversão da América Latina como prioridade da política externa, a adesão ao Pacto da ONU sobre Direitos Civis e a ratificação do Tratado de Tlatelolco para prescrição de armas nucleares. Não pertencente aos quadros da diplomacia, Setubal assumiu o Itamaraty sob suspeição de embaixadores e o deixou com amplo respeito do corpo técnico da casa e de organismos multilaterais, o que lhe rendeu amplo rol de amigos, muitos dos quais antigos críticos, e uma gama de temas e gossips que alimentaram por anos conversas em almoços em Nova York, Paris ou na sede do banco. A terceira frente de Setubal foi a internacionalização do Itaú, num contexto marcado pela liberalização das contas de capital e desregulamentação dos mercados. Numa economia globalizada, dizia, os bancos só são fortes e seguros se mudarem de escala, tornando-se competitivos no plano mundial. Superada a última frente, o desafio foi promover sua sucessão no Itaú, decisão da qual sempre se orgulhou. Sem abandonar a leitura de relatórios e balanços, as visitas às unidades da Itaúsa e as religiosas reuniões para discutir política e economia, concentrou-se em iniciativas comunitárias, apoiando a USP, a Paulista Viva e as artes. O painel de Portinari e a coleção de artes primárias que se encontram na sede da Itaúsa e a aranha de Louise Bourgeois, que Milú Vilella tomou para o Museu de Arte Moderna, são frutos dessa opção. Cosmopolita, com apartamento em Paris e Lisboa, mas apegado a São Paulo e à sua casa na Prata, Setubal foi conservador nos hábitos, discreto na vida social, continente com os amigos, inflexível na ética e dotado de implacável raciocínio lógico, fina ironia e obsessão por boas polêmicas. Conversamos diariamente nos últimos 30 anos, o que me permitiu estar ao seu lado no inacreditável almoço que ofereceu a João Pedro Stédile e Frei Betto. Horas depois, perguntando-me o que achara do encontro entre o capitalista e o revolucionário, eu o lembrei do banqueiro anarquista, do conto de Fernando Pessoa. Ele riu e me disse que a vida seria muito chata se tivesse de gastá-la apenas na companhia de quem pensava como ele. *José Eduardo Faria é jornalista, advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi assessor de Olavo Setubal por 30 anos REPERCUSSÃO Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República "Olavo Setubal sempre acreditou que era possível construir um futuro melhor e deu uma importante contribuição ao País" José Sarney Senador e ex-presidente "Um cidadão exemplar, um patriota, um homem correto, sério, decente, que pensava e morreu pensando no Brasil" Henrique Meirelles Presidente do BC "Doutor Olavo foi exemplo de vida pública e privada. Sua liderança sempre se pautou pelo empreendedorismo, capacidade de trabalho, visão e integridade" Márcio Cypriano Presidente do Bradesco "Somos de outra geração e temos de agradecer o exemplo que ele deu na área financeira e política. Deixa exemplo de perseverança e persistência" Pedro Moreira Salles Presidente do Unibanco "Se os bancos brasileiros são vistos no mundo como modelo de solidez e inovação, muito dessa reputação se deve à filosofia de trabalho do dr. Olavo" José Serra Governador de São Paulo "Perco um amigo. Foi um excelente prefeito de São Paulo, um grande empresário, não apenas na área financeira, mas da área industrial" Fernando Henrique Cardoso Ex-presidente "Um homem que tinha visão, que prestou serviços e que era capaz de ver muito além dos muros dos nossos bancos. E pensava no País"

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