Entender a importância dos espaços públicos na vida privada transforma a relação das crianças com a cidade e impacta, diretamente, as mudanças cotidianas
"O que são espaços públicos e privados?", pergunta a professora a uma turma de crianças de 4ª, de uma escola particular. "O que vocês conhecem de um e de outro? Me deem exemplos", pede. As crianças começam a falar de lugares que frequentam e a cada nome que surge a professora pergunta: "E é público ou privado?". As crianças pensam, questionam e investigam o que tem por trás da pergunta. O que define um lugar público ou privado? Começam a fazer uma lista de hipóteses.
A grande maioria tem no público a definição de coletivo. Como um lugar cheio de gente ou de um lugar onde muita gente pode entrar e circular. Shopping é público, escola é pública, clube, parques... Num instante passam a levantar novas hipóteses: "lugar público você não paga e privado sim". "Então o parque Villa Lobos é privado porque se você quiser andar de bicicleta tem que pagar", uma criança questiona. Mas logo alguém diz: "mas você paga só para andar de bicicleta e não para entrar lá". Circular livremente por espaços públicos agora, além de estar vinculado ao coletivo de pessoas, também está atrelado ao que é oferecido de graça. Ao que não se paga.
A lousa vai ficando cheia de nomes de lugares. De um lado os que pensam ser públicos, do outro, os privados. A professora continua a fazer perguntas que os colocam a pensar. A manter o movimento da investigação. Perguntas têm esse poder de movimento. De manter algo vivo. Aos poucos, começam a mudar lugares de posição. Inventam a categoria "público privado" pra algo que eles acham ser uma mistura dos dois como o shopping, onde qualquer um pode entrar, mas só alguns compram. "Mas será mesmo que qualquer um pode entrar?", recebem a pergunta como mais uma provocação ao pensar.
Pensar este que exige desconstrução e reconstrução. Exige a desestruturação de alguns conceitos que, às vezes, a gente acha ter por certo. Como o certo do qual algumas carregam de que qualquer um pode entrar. Outras dizem "não". "Um morador de rua não pode. O segurança vai por ele pra fora", dizem. Entramos agora em Direitos Humanos, na igualdade, nos pré-conceitos e no respeito a qualquer diferença ou diversidade frente aos espaços públicos.
Entramos no campo da desigualdade social do nosso país. O que diz muito sobre lugares públicos e privados. O que diz muito sobre a lousa cheia de nomes no campo do privado e poucos no público. Do que faz a gente entender o porquê de saber sobre ambos. Alguns dizem que os lugares privados são mais seguros. Tem menos assaltos e roubos. "Porque lá tem aqueles seguranças particulares armados". Aparece o conceito de arma como sinônimo de segurança. Do sentir-se seguro. Quanta coisa a desconstruir - ou reconstruir, penso eu, agora. Porque tudo isto fala sobre cidadania, sobre o pertencer. Sobre o também ser responsável pela construção do lugar como algo possível, e passível, de ser realmente coletivo e diverso em todas suas frentes de possibilidades.
Numa séria curta do Arquitetura Futuro, chamada Cidade Cidadão, o conceito é apresentado lá na Grécia antiga e traz as praças, as Ágoras, como palco dessa conversa e dos que faziam parte dela ou não. Um lugar do cotidiano. E toda semelhança não é mera coincidência. Os que se interessavam pela cidade como construção de vida publica eram os chamados "politikós", de onde surge o conceito de político. Os que não queriam nada com nada, eram chamados de "idiotés", de onde dá origem ao nosso idiota.
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A série nasceu da constatação de que o conceito de cidade é ainda pouco compreendido por grande parte do público, para quem a vida urbana é marcada pela desconexão entre indivíduo e espaço coletivo. A ideia é lançar uma provocação, assim como faz a professora a seus alunos. incentivando quem assiste a refletir sobre o papel fundamental das cidades na distribuição de riqueza e democratização no acesso a oportunidades e propondo um debate aprofundado sobre a realidade urbana do país.
E as crianças refletem. Sobre o que falaram, o que viram e escutaram. Refletem sobre a lousa cheia de lugares privados e alguns públicos. Questionam sobre o qualquer um poder entrar, o pagar para ter direito e sobre segurança. Sobre a responsabilidade e o papel de cada um frente a tantas possibilidades, sejam elas públicas ou privadas. Se deparam com o olhar político sobre a vida. Viver é sempre um ato.
Maria Homem, psicanalista e professora do Núcleo Diversitas-USP, fala que é preciso entender os conceitos no sentido intimamente humano. Pra ter sentido. Ganhar sentido. Porque quando a gente internaliza, a gente sente. Vive, ou torna vivo. E é preciso ser vivo para viver na cidade o que é público e privado. Feito quem carrega dentro um conceito que, aparentemente, é externo. Feito quem tem na rua, uma possibilidade ampla de construção de cidade. E o que, aparentemente, é apenas uma aula de escola, é, certamente, a transformação de um olhar para os espaços públicos e privados da sociedade.
Isso é fazer política. Isso é ensinar o que é política.