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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Nunca houve tanto a dizer

Mas a falta de disposição prevalece

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Foto do author  Renato Essenfelder
 

arte: renato essenfelder/sd

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»As ruas estão cheias de gente apressada. Nos intervalos do sinal verde, um palhaço bebe água e mastiga um pedaço de sanduíche, na contramão do tráfego. Entretem-se no celular. Ao redor os anúncios falam de imóveis, brinquedos, iogurtes e planos de saúde, vendem conforto e ilusões. Está quente no inverno, frio no verão, a temperatura variou 20 graus em três dias. O suor escorre na testa do motorista, que não abre os vidros por medo de assalto. Uma pichação suspira sonhos de liberdade. Policiais e mendigos sustentam olhares.

A internet não para. Cadáveres, receitas, sexo e discursos inflamados.

Quanto a mim, nunca houve tanto a dizer e tão pouca disposição para fazê-lo.

É o maior pesadelo de um escritor. Tenho constantemente a sensação de que é preciso dizer, falar, botar em narrativa o absurdo da vida, mas, ao mesmo tempo, calo. Como não calar?

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A vida sempre foi absurda, desde tempos imemoriais. Por isso temos os mitos, as religiões, a arte. Sempre aconteceu de um raio interromper o cálculo das coisas, de uma pedra bloquear o caminho. No entanto, a aceleração insaciável, a extremação do absurdo, que continuamente nos perturba e distrai, levou o absurdo a outro patamar. Tudo é bizarro e nada é bizarro ao mesmo tempo, e parece que o mundo está sempre dobrando as apostas para capturar a nossa atenção.

Nem sequer temos tempo de pensar nisso - ou forças. O fluxo de pensamento é interrompido de tal maneira que interromper as interrupções torna-se um esforço heróico. Conseguir ler um livro ou ver um filme até o final sem nem tocar no telefone já me traz uma secreta alegria, como se eu pairasse por um instante acima dos mortais. Mas só por um instante.

Há muito a dizer, mesmo que todas as pessoas falem ao mesmo tempo e sem parar, agora.Muito ruído, mas pouca palavra. Opiniões sem fim sobre todas as coisas.

Estamos frente a frente em silêncio, ocupados. Onde estão as palavras abraçadas em narrativa, as grandes histórias? Distraídos, saltamos de pedaço em pedaço, de parágrafo em parágrafo, na esperança de que o próximo estilhaço traga a grande revelação. Não agora, mas em breve, no próximo capítulo, tudo fará sentido. O melhor é o que vem por aí.

A conta vem aí, o café já está frio. Quanto a mim, queria acender uma grande fogueira, no meio da rua, para que pudéssemos contar histórias, tecer memórias, a partir de tantos estilhaços.«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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