Vinte e dois minutos do segundo tempo. A placa eletrônica mostra o número 10 em luzes vermelhas, indicando a substituição de Neymar. Instantaneamente, a torcida corintiana presente na Neo Química Arena vaia e xinga o craque do Santos, que responde de maneira irônica, aplaudindo e mandando “beijinho” para as arquibancadas. O sarcasmo exibido na derrota por 2 a 1 o clássico de quarta-feira faz parte do traço rebelde do atacante, cuja ousadia é o alicerce de uma dos personagens mais carismáticos do futebol mundial nos últimos 15 anos.
Aos 33 anos, Neymar está longe da sua melhor forma e figurou mais as páginas de fofoca do que o noticiário esportivo nos últimos dois anos. Nada disso impediu a mobilização dos torcedores do Santos, que esgotaram camisas com nome do astro em lojas oficiais e alavancaram o número de associados. O clube também ganhou 1,7 milhão de novos seguidores nas redes sociais. Afinal, qual o segredo do carisma de Neymar e por que ele fascina tantos torcedores?

O advogado e bicampeão brasileiro de oratória Giovanni Begossi, mais conhecido nas redes sociais como ‘El Professor da Oratória’, explica os diferentes motivos para Neymar estar sempre em voga e arrastar uma multidão de fãs independentemente de polêmicas. Para o especialista, é justamente a dualidade do craque e sua “imperfeição” enquanto figura midiática que gera o engajamento em torno do atacante.
“Toda história que ressoa de maneira retumbante é repetida através dos milênios porque são narrativas que já estão no inconsciente coletivo. Quando a narrativa já vem pronta, encaixada em certos padrões, o ser humano é atraído para ela de forma magnética. Neste sentido, o Neymar é uma espécie de ‘herói imperfeito’”, aponta o especialista.
“Ao mesmo tempo que o roteiro da vida dele é épico, porque saiu da Vila Belmiro e conquistou o palco mundial, sendo inspiração para muitas pessoas, ele não transmite uma ideia de perfeição como Messi ou Cristiano Ronaldo”, comenta Begossi, concordando que o craque esteja mais próximo, por exemplo, de Maradona do que de Pelé.
“O Pelé é o maior jogador do mundo, só que o Maradona tem mais polêmicas envolvendo o nome dele. Talvez o Neymar tenha o futebol do Pelé e a polêmica do Maradona, mas com um tempero próprio. Isso é o que torna ele único”, comenta.
O arco do (anti) herói
Neymar foi tratado como craque desde a sua chegada ao Santos, aos 11 anos. Entre 2009 e 2013, conquistou a Libertadores, Recopa, Copa do Brasil e o tri do Paulistão. Alguns de seus mais de cem gols com a camisa santista ficaram marcados na memória do torcedor brasileiro, e o craque foi para a Europa como a maior esperança do País na busca pelo Hexa. Se em 2014 ele teve de dizer adeus à Copa após grave lesão, dois anos depois ele levou o Brasil ao inédito ouro olímpico.
Pelo Barcelona, Neymar brilhou ao lado de Messi, sendo campeão mundial e da Champions League. Contudo, não conseguiu repetiu o feito após rumar ao Paris Saint-Germain para ser o principal nome do time. Além do excesso de lesões, ele teve de lidar com a antipatia de rivais, por supostas simulações em campo, e da própria torcida, que duvidava da dedicação do atleta, que teve atuação apagada na Copa do Mundo de 2018, chamando mais atenção pelos extravagantes cortes de cabelo, e sofreu com problemas físicos no Mundial de 2022.
A ida para o Al-Hilal, da Arábia Saudita, soou como um recomeço, mas Neymar quase não entrou em campo por causa de grave lesão no joelho. Durante a recuperação, casos extraconjugais do craque ganharam destaque na imprensa. O pedido de desculpas a mulher grávida, Bruna Biancardi, ultrapassou a marca de 13 milhões de curtidas no Instagram. O hype do craque continuou inabalável, com o sucesso do cruzeiro temático Ney em alto mar. A construção de um lago artificial sem licença ambiental também não preocupou os mais fanáticos pelo craque.
“A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Ele tem polêmicas? Sim, mas não foi nada no nível do Robinho, Daniel Alves, ou até mesmo o Paquetá, que tem o nome envolvido em manipulação de jogos. O segundo ponto é que a polêmica deixa você como líder de movimento ainda mais forte. Trump, Elon Musk e o próprio Bolsonaro são alguns exemplos de figuras polêmicas que não perderam a relevância”, destaca Giovanni Begossi.
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“Um dos campos da comunicação são os gatilhos mentais, que extraem respostas automáticas no cérebro das pessoas. Um deles é a polarização. Quando você tem posicionamentos fortes e não agrada a todos você tem um público mais leal. Quando o Neymar fala que gosta de videogame, pôquer e assume que trai, que tem suas imperfeições, quem se identifica com ele vai se identificar ainda mais”, completa.
O especialista vai mais a fundo e cita que a construção da imagem de Neymar está associada a alguns arquétipos explorados na filosofia e psicologia. No caso do craque, são as figura do “herói”, “amante” e “rebelde”. Para ele, a ideia de o atacante voltar ao Brasil para recuperar o bom futebol e se preparar para a redenção na Copa do Mundo 2026, diz muito sobre o senso coletivo da sociedade brasileira.
“A gente tem também o arquétipo do ‘homem comum’, que é justamente salvo pelo ‘herói’. O brasileiro tem até esta certa inocência na política, de imaginar que precisa eleger alguém para ‘salvá-lo’”, desenvolve Begossi.
Odiado por uns, amado por outros
Os jornalistas que estavam presentes na zona mista da Neo Química Arena após o clássico entre Corinthians e Santos puderam atestar o quanto Neymar é respeitado pelos seus pares. Os olhares mais atentos presenciaram o presidente corintiano Augusto Melo se dirigindo ao vestiário visitante para cumprimentar o astro. Até mesmo o craque holandês Memphis Depay não se furtou em trocar chuteiras com o jogador e convidá-lo para sua festa de aniversário, que ocorrera horas depois em hotel nas redondezas do estádio.
Apesar das vaias e dos xingamentos durante a partida, torcedores do Corinthians se espreitaram no estacionamento da arena em Itaquera para tentar ganhar ao menos um aceno do ídolo. Em conversa com os jornalistas, o volante Ryan, de 21 anos, se divertiu ao comentar o êxito na caça ao craque dentro de campo, marcada por um carrinho digno de Campeonato Uruguaio no início do segundo tempo. “Foi da hora”, brincou o jogador.
“Neymar foi o nosso maior expoente na década passada. Precoce, e de um talento absurdo, incomum, foi ousado em campo, e dos raros que na história apresentam movimentos e ações que outros não tinham executado antes. Tínhamos milhões de adultos sonhando com a nossa seleção no lugar mais alto por conta dele, e outros milhões de crianças sonhando em ser no futebol, o que ele era, um “artista de competição”, comenta Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports, empresa de entretenimento norte-americana, que gerencia a carreira de centenas de atletas, entre eles Endrick e Vini Jr.
“Hoje, no Brasil, é clara uma divisão entre os já nostálgicos, que querem recordar seu surgimento e mostrar aos filhos quem é ou foi seu ídolo, e de outro lado, os que o tem como símbolo de uma geração brasileira que não conquistou o mundo, o que gera debates, e até mesmo conflitos, que elevam o interesse por ele, sua audiência, em diferentes meios e plataformas. Felizmente, nos estádios, a capacidade é pequena para acomodar os que torcem pela sua recuperação, e só esses estarão presentes”, conclui.