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Conheça o Manchester da Vila Brasilândia: técnica lidera trabalho para tirar crianças da rua

Além de ser presidenta e de cuidar dos uniformes, Patrícia Verdetti faz as vezes de psicóloga, enfermeira e tem ainda o marido como auxiliar-técnico no projeto social

Por Toni Assis
Atualização:

Manhã de outono na Vila Brasilândia. O sol tímido indica uma temperatura propícia para jogar bola. Ao lado de uma quadra de futebol soçaite, Patrícia Verdetti já está à espera de seus alunos para mais um dia de aula com seu projeto. Aos 52 anos, mãe de quatro filhos, e avó de dois netos, ela vai transformando sua fisionomia com a chegada dos meninos. “Fala Geleia, e o seu Corinthians hein, perdeu de novo, assim não dá meu filho”, brinca ao falar com Cauê Guilherme Avelino Cassiano, um adolescente que mal saía de casa por causa de seus 120 quilos. Por meio do esporte, aquele garoto obeso e depressivo se transformou em um zagueiro falante, que lidera seus companheiros e gosta de fazer piada durante o treino.

Ainda acima do peso, ele segue no objetivo de entrar em forma para defender o time do projeto na Copa São Paulo de base. “Tenho 95 quilos, mas dá para baixar para 70. É cuidar da alimentação e me dedicar nos exercícios. Faço isso numa boa. Estou em fase de crescimento”, disse o garoto do alto de seus 15 anos e 1,65 m de altura. Criadora da Associação Manchester da Brasilândia, uma referência ao time inglês e ao bairro onde mora, Patrícia faz de tudo um pouco nessa cruzada para melhorar a qualidade de vida dessas crianças em uma comunidade marcada pela violência. “Sou professora, treinadora, presidente, psicóloga, enfermeira e cuido da rouparia também. Tenho mil e uma utilidades. Mas faço tudo com muito amor no coração porque adoro estar no meio dessa turma”, disse Patrícia ao Estadão.

Patrícia Verdetti comanda treino do Manchester da Brasilândia, projeto social que atende crianças e adolescentes na zona norte de SP. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

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Há pouco mais de uma semana, ela deu provas de que realmente coloca o Manchester como prioridade. Esteve no Rio Grande do Sul para levar um de seus meninos para testes no Clube Futebol com Vida, da cidade de Três Passos, município próximo à fronteira com a Argentina. Além do potencial técnico do garoto, o lado social acabou sendo determinante para essa mudança, já que seu aluno vivia em estado de vulnerabilidade.“

O menino foi aprovado (não cita o nome) e vai ter escola, alojamento, alimentação, disciplina e ainda disputará os campeonatos da categoria. É uma possibilidade que se abre para o seu futuro”, comentou a treinadora sobre a sua viagem.

De volta a São Paulo, ela segue no comando das ações na Brasilândia. O treino que foi acompanhado pela equipe do Estadão na quinta-feira começou pontualmente às 8 horas, e com toda a turma da manhã atenta em sua preleção. No discurso da treinadora, o espírito do projeto foi reforçado: cuidado dos meninos maiores com os alunos pequenos e respeito entre os garotos. “Aqui eles se sentem acolhidos pela maneira que dou os treinos, a conduta com os companheiros têm de ser exemplar. O objetivo é educar e apresentar o futebol. E você não vê ninguém faltando”, afirmou Patrícia.

Única menina do grupo, Débora é um exemplo dessa convivência pacífica. Atacante rápida e com boa finalização, a adolescente de 14 anos cumpre os exercícios físicos no mesmo ritmo que os garotos. “A Débora sempre jogou bola, mas não era aceita em alguns projetos por ser menina. Muitos garotos não gostam de misturar. Aqui no Manchester da Brasilândia, é diferente. Ela é tratada muito bem, é uma de nossas promessas e está sendo preparada para o projeto Meninas em Campo, do Santos Futebol Clube.”

A treinadora manifestou a intenção de abrir turmas para mais garotas, mas disse ter dificuldades. “O projeto está aqui para isso. O problema é que a captação é mais complicada porque muitas garotas são mães ainda muito jovens e outras já trabalham desde cedo. Sei que na região tem muita adolescente que gosta de futebol, mas talvez não saibam do nosso trabalho ainda.” A Brasilândia já foi um dos bairros mais violentos do Brasil, principalmente na década de 90, com números altos de assassinatos. Atualmente, não é mais assim. É um bairro da periferia de São Paulo ainda com muitas dificuldades. Estima-se que more nele quase 300 mil pessoas.

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Espaço para elas: meninas também têm vez no projeto Manchester da Brasilândia.  Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

CURSOS PELO SINDICATO DOS TREINADORES E MARIDO AUXILIAR TÉCNICO

A iniciativa conta atualmente com cerca de 60 integrantes, é gratuita, e a faixa etária vai dos cinco aos 17 anos. A família tem um peso importante nesse processo. Foi por meio de um de seus filhos que ela entrou para o mundo do esporte. Em 2014, o time do Taboão da Serra encerrou as atividades da categoria de base em que Vítor atuava. Como o menino ficou sem jogar bola, a mãe, então, formou uma equipe com garotos de rua e deu início ao projeto criando o Manchester. Perfeccionista, foi além: fez oito cursos no Sindicato de Treinadores de Futebol do Estado de São Paulo (Sitrefesp), além de completar duas especializações na Associação Brasileira de Treinadores de Goleiros (ABTG).

No formato atual, o seio familiar segue no DNA do projeto. Nivaldo, o marido, é seu auxiliar-técnico. Quando não está trabalhando como pintor, é o braço direito nos jogos que o Manchester da Brasilândia realiza contra times de outros bairros. “Eu sou mandona e ele tem jogo de cintura. É bom ter mais de uma cabeça pensando e o Nivaldo me ajuda a tomar as decisões e também a conversar com os meninos na hora das orientações.”

Recentemente, um presente caseiro vem ajudando em sua rotina. “Ganhei uma máquina de lavar de dez litros do meu filho que ajuda a deixar os uniformes limpos mais rápido. Tenho uma máquina de secar também e consigo cuidar bem do nosso fardamento”, comentou.

Determinada, a treinadora disse também que o preconceito, pelo fato de ser mulher, é outro obstáculo que de vez em quando se apresenta. “O machismo existe sim. Tempos atrás, em um campeonato de um amigo, um atleta teve desavença com meu jogador e veio falar para mim que futebol era para homem. Ah, machuca a gente. Mas aprendi a conviver com isso. Não vai ser a última vez que vai acontecer.”

Preleção dos treinos do Manchester da Brasilândia prega o respeito entre os garotos atendidos no projeto.  Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

O projeto na comunidade da Brasilândia conta com aulas de futebol quase todos os dias da semana e em dois turnos para poder assistir ao maior número de jovens e não atrapalhar o horário escolar. Além da quadra soçaite, a treinadora conseguiu também um campo de futebol no bairro. Assim, ela alterna as atividades nos dois lugares. “Não temos o apoio da prefeitura nem do Estado. O que temos é o CDC Osvaldo Brandão (localizado na região). O novo diretor apoia nossa causa e dá o campo para trabalhar de segunda à sexta.”

Embora o trabalho social seja feito na Brasilândia, muitos dos alunos do projeto vêm de outras comunidades, segundo Patrícia. Durante a entrevista, ela afirmou que a sua iniciativa tem como prioridade abraçar todas as crianças que gostem de futebol.

“Aqui, tanto o menino habilidoso quanto o que não sabe jogar têm espaço. O que vale é a inclusão. Já tive aqui um garoto que tinha problema respiratório, asma. Depois que passou a conviver com a gente, nem bombinha usa mais”, afirma em um tom vitorioso.

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Alguns dos integrantes do projeto têm histórias de superação. O jovem Jean, de 17 anos, é um desses exemplos. Ele nasceu com uma má formação óssea, tinha dificuldade para se manter em pé por muito tempo e teve de operar os dois pés. Foi submetido à cirurgia, mas com a pandemia, não podia frequentar treinos em função das restrições da covid-19. No período de “reclusão”, passou a fazer exercícios em casa por conta própria e foi isso que o motivou a se recuperar. Hoje é o principal artilheiro do projeto nos últimos três anos.

“O futebol era a vida dele. O Manchester o motivou a treinar em casa durante a pandemia e hoje, graças a Deus, faz o que gosta, vindo treinar aqui com a Patrícia”, disse Silvia Dantas, mãe de Jean, que acompanhou o treinamento do filho.

Embora o projeto alimente sonhos de um dia vingar no futebol profissional, o objetivo de Patrícia é formar cidadãos. “O plano A é educação. O futebol vem depois. Sabemos que as dificuldades dentro da comunidade são muito grandes. Aqui todos têm de estar estudando e tirando boas notas. Tentamos ser a ponta desse iceberg para melhorar o mundo deles. Temos aqui casos de ex-alunos que hoje são proprietários de pizzaria, administradores de empresa, enfim tornaram-se cidadãos de fato.”

Vitória Evelyn Pires Ramos, de 21 anos, não treina mais sob o comando da Patrícia. Mas foi por meio do Manchester da Brasilândia que ela acabou convidada para jogar um campeonato mundial de futebol de três na Inglaterra após se destacar por dois anos no projeto. Já disputou o Campeonato Paulista pelo Nacional, mas uma contusão no joelho atrapalhou os seus planos. Atualmente, a atacante concilia um trabalho em uma adega na Brasilândia com partidas para reforçar o ataque da Ponte Preta no futebol de sete.

“Graças à Patrícia e ao Manchester, tive a chance de conhecer um outro país, uma outra cultura, jogar futebol. Tive uma lesão que acabou me atrapalhando e precisei pagar um convênio para me tratar. Mas estar aqui vendo o treino me traz boas lembranças”, afirmou Vitória, que é a terceira de seis filhos e ajuda a mãe a pagar as despesas de casa.

Projeto Associação Atlética Manchester da Brasilândia tem como objetivo recuperar jovens excluídos e tirar crianças das ruas.  Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO

EDUCAÇÃO DE MÃOS DADAS COM ESPORTE

Fincar as raízes de um projeto social em uma comunidade carente requer estratégias para conseguir atrair seu público alvo. No caso do Manchester, algumas parcerias foram formadas para tentar melhorar a integração desses jovens com o esporte. Maria Isabel Lopes da Silva, assistente social, é uma peça importante no elo entre o projeto e as famílias dos alunos. “Quando identificamos um comportamento mais tímido da criança, chegamos para conversar a fim de saber o que está acontecendo. Pode estar passando alguma necessidade ou sofrendo algo de ordem emocional. Daí procuramos conversar para entender o problema”, afirmou.

Os alunos têm ainda, por meio de uma parceria com a Ômega e o Grupo Espírita Batuíra, aulas gratuitas de inglês e informática. “A Brasilândia não é um bairro fácil. Então, essa é uma chance de oferecer um curso gratuito para jovens carentes para que eles tenham mais chances no futuro. Mas os meninos têm de ter o comprometimento de assistir às aulas. Caso contrário, passamos a vaga para quem realmente quer.”

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Essas aulas acontecem na terça e no sábado. Terça não tem atividade esportiva no projeto para que eles possam frequentar o curso. No sábado, se tiver jogo, a partida é agendada para à tarde porque o horário da manhã é reservado para concluir as aulas oferecidas por essa parceria.

É o caso, por exemplo, dos trigêmeos Vítor, Rodrigo e Gustavo, que têm 12 anos e frequentam o projeto social e também foram destaque no treino. Para Solange Figueiredo de Souza, mãe dos meninos, essa ajuda facilita muito a vida. “Não tenho ideia de quanto teria de gastar se tivesse de bancar o inglês e a informática para eles. Seria uma despesa grande e não teria condições. Eles adoram fazer os cursos”, afirmou a mãe.

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