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Xadrez com música, torcida e emoção: como as transmissões popularizaram o esporte no Brasil

Comunicadores utilizam recursos audiovisuais, análises e até paródias para engajar público em longas partidas; Raffael Chess, um dos maiores do ramo, conta ao ‘Estadão’ os bastidores de suas lives sobre a modalidade

Por Fabio Tarnapolsky
Atualização:

Gritos de vitória, música de fundo e animações na tela: foi deste jeito, que poderia facilmente ser confundido com um título de futebol na TV, que o criador de conteúdo Rafael Santos, o “Raffael Chess”, anunciou Ding Liren como o novo campeão do mundo de xadrez, em 30 de abril, e o primeiro triunfo de Luis Paulo Supi no Tata Steel Challengers, no início do ano. A emoção, priorizada por ele, é fator considerável para o crescimento do xadrez no Brasil com as coberturas ao vivo, cada vez mais populares no meio digital. Assim como na mídia tradicional, fazê-las requer pesquisa, preparação e talento para manter o engajamento durante a longa duração de uma única partida.

Em números, o retorno de audiência já é grande não só no País, mas também a nível global. A decisão do mundial de 2023 no canal do Chess.com, a maior plataforma online da área, tem, atualmente uma soma de quase dois milhões de visualizações. Raffael, por sua vez, costuma passar das 100 mil e já chegou a ter 21 mil espectadores ao vivo, fato citado por ele em entrevista ao Estadão como seu recorde de números. Para viver das lives, ele precisou, primeiro, se desenvolver na internet e, logicamente, entender da modalidade, algo que foi mais fácil por praticá-la desde criança. Hoje, ele consegue passar até 12 horas ininterruptas no ar.

Raffael é um dos principais divulgadores do xadrez no Brasil e teve papel no crescimento das transmissões ao vivo. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

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Antes de se firmar como um comunicador e influenciador do xadrez, o gaúcho de Gravataí competiu em torneios, com relativo êxito regional: foi campeão estadual por equipes e alcançou quase os 2200 de rating pela FGX (Federação Gaúcha de Xadrez) - número esse que avalia o nível de um jogador; para se ter uma ideia, a pontuação dos melhores do mundo pela FIDE (Federação Internacional de Xadrez) começa em aproximados 2600 e vai até os 2853 de Magnus Carlsen, a maior no momento em que esta reportagem foi finalizada. A opção de não seguir carreira veio por um motivo comum entre os mais jovens enxadristas, que é a falta de tempo para se dedicar, normalmente sentida no fim do ensino médio.

“Quando se destacam, que é nesse período, têm de começar a trabalhar e fazer a escolha de seguir jogando ou não. E eu tive isso”, explica Raffael. “Eventualmente, ia a um ou outro torneio, mas não era algo frequente, sempre via como um hobby”. Assim, ele focou em sua profissão, de técnico em eletrônica, mas sem deixar a paixão de lado.

Ao enxergar a ascensão dos canais sobre o esporte no YouTube, se animou em criar conteúdo como uma forma de lazer. “Eu nem sabia se dava dinheiro”, comenta. Ele construiu uma base de público considerável e teve vídeos que ficaram famosos, exemplos de “Já jogou com o Chess Titans do Windows no nivel máximo?” e “Enfrentei a Beth Garmon com 2700 | O Gambito da Rainha”. Isso o fez crescer e chegar ao seu patamar atual de analista e streamer.

Atualmente, o “carro-chefe” do canal Raffael Chess é a cobertura do xadrez. A maioria de suas produções editadas é explicando a complexidade de confrontos atuais e históricos, junto às transmissões de eventos, sem precisar de câmeras nos lugares para acompanhá-los.

Transmissões têm análises, torcida e interação com o público

Os campeonatos são disputados em tabuleiros DGT, que contêm sensores eletrônicos e conexão com relógios, o que permite que sites dedicados, como Chess.com, Lichess e chess24, disponibilizem a posição das partidas, lances ao vivo e o tempo restante dos jogadores.

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No campeonato mundial clássico, cada um começa com 120 minutos, depois, ganham incremento de 60 minutos em seus lances de número 40, mais 15 minutos ao atingirem 60 e 30 segundos adicionais a cada jogada após isso, ou seja, uma partida pode demorar muito para acabar, e quem transmite deve estar preparado para essa maratona. Há ainda os modos “rápidas”, “blitz” e “bullet”, de limite menor, que também têm seu espaço no competitivo, com muitos duelos em um único dia.

As coberturas feitas pelas plataformas costumam ser conduzidas por atletas profissionais, normalmente com títulos de Mestre para cima, que explicam as posições e possíveis linhas baseados em seus conhecimentos próprios e no estilo de jogo dos competidores. A ideia é aproximar o público e localizá-lo em uma modalidade tão complexa. No caso de Raffael, além da análise, há o toque da emoção e constante interação com a audiência para que nunca falte assunto nas horas que se sucedem.

“Não tem roteiro exato, é improvisado”, explica o streamer. “A gente cria o layout, feito pela Jeni, minha mulher, para cada evento, e temos o “convidado”, que é o chat. Se falta assunto, ele sempre tem sobrando”.

Se no futebol o narrador precisa esconder sua torcida, escolher um lado no xadrez só alavanca as transmissões. “Quando há um apoio muito forte para um jogador, há expectativas. A gente sabe qual é o melhor lance disponível com o recurso de computação e cria o mistério se ele vai encontrá-lo. Normalmente, tenho a torcida para um, e pode ter gente que não torce para o mesmo, mas cria engajamento”.

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A máquina que indica as jogadas ideais é a “Engine”. Através de cálculos avançados, aponta quem está com a vantagem na partida de acordo com a posição, e isso é essencial para uma live emocionante. Quando um brasileiro acerta uma sequência difícil, Raffael usa e abusa do audiovisual: animações de estouros de confetes na tela, músicas de estádios e até o tema da vitória da Fórmula 1.

Uma grande “medidora de emoção” é a barra de avaliação das plataformas, que mostra o quanto um jogador está melhor e se há xeque-mate forçado encontrando a linha correta. Se não tem um representante do Brasil, a torcida fica mais dividida e, vez ou outra, surgem rivalidades entre a audiência, tudo guiado pela tensão do momento.

Raffael Chess anuncia em sua transmissão que Ding Liren é o novo campeão mundial de xadrez. Foto: Reprodução/YouTube

Comendo ovo frito

E como ficar tanto tempo no ar sem perder a energia? “Comendo ovo frito”, brinca Raffael, que transformou a refeição em um “personagem” da stream. “Nas lives, o pessoal fica me zoando, achando que é brincadeira, mas eu como uma quantidade de uns dois ovos fritos e fico ali direto”, diz.

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Mesmo existindo outros canais de sucesso na internet, ele não os vê como concorrência, pois, na realidade, ela nem existiria. “Não há essa competição direta. Se outro fizer o mesmo evento, o engajamento (dos dois) sobe. A gente até fica mais feliz quando tem mais pessoas nisso”, ressalta. Essas métricas, que avalia em cada vídeo, são essenciais para escolher quais serão as próximas lives e como irá trabalhá-las.

Além das produções em seu canal próprio, ele já teve parceria com o chess24 para narrar eventos específicos, sem deixar de lado o modo com que conduz os jogos. “Um dos acordos foi fazer da maneira como faço habitualmente, então, seguiu a fórmula”, relembra. “Na época, o site tinha menos alcance e o público que foi descobrindo era um pouco menor, mas o jeito de apresentar era o mesmo”.

Convidar personalidades do xadrez é uma prática comum das plataformas e não é raro vê-las comentando torneios junto a jogadores profissionais ou liderando coberturas.

Possíveis problemas e suas soluções

Apesar de ter vivido momentos marcantes, Raffael também passou por dificuldades. Em maio, ele transmitiu o Continental das Américas de 2023, um dos mais importantes campeonatos latinos de xadrez, quando aconteceu algo inesperado: os sensores dos tabuleiros dos brasileiros e de diversos outros participantes não funcionaram nos primeiros dias; por isso, teve de encerrar antecipadamente lives planejadas para durar uma tarde inteira, restando-lhe focar nos vídeos produzidos de análises até o problema ser resolvido.

Em um evento nacional, isso se consertaria com mais facilidade, já que o contato entre os organizadores, jogadores e comunicadores é mais próximo e basta, por exemplo, uma mensagem avisando o ocorrido. Outra solução é ver as partidas através das câmeras do local. No caso do Continental, não havia nenhuma dessas possibilidades. “Foi um ponto fora da curva”, relembra. Segundo ele, acompanhar competições internacionais presencialmente ainda é uma realidade distante, então, ter o DGT em bom funcionamento é essencial.

Raffael já teve que fazer transmissões da casa de seu pai por problemas de internet onde morava; improviso e adaptação são característicos de suas coberturas. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Próximos eventos e futuro do Brasil no esporte

Sua próxima grande cobertura planejada é a da Copa do Mundo da FIDE, de suma importância no cenário, que dá acesso ao Torneio de Candidatos, o definidor do desafiante ao reinado de Ding Liren. Serão vários atrativos: representantes nossos na disputa, confrontos históricos e a presença de Magnus Carlsen, considerado por muitos como o maior da história, atrás de um troféu que ainda não tem. Prato cheio para o streamer. “A ideia é acompanhar com a parte da torcida até a final, mesmo se os brasileiros caírem antes. Dependendo, criamos gráficos e músicas especiais”.

Apesar da expectativa para o evento, um título mundial ainda não está no alcance do xadrez por aqui. Atualmente, as potências estão concentradas no hemisfério norte, sendo duas delas emergentes: China, de Ding, e Índia, do lendário Viswanathan Anand e de várias revelações nos últimos anos. “Ele (Anand) criou escolas onde jogadores fortes ensinavam outros muito habilidosos, e aí, começou a surgir uma série de super Grandes Mestres lá que podem ser campeões, e a China fez parecido”, diz Raffael, que enxerga o método como modelo para ser replicado no Brasil no futuro.

Luis Paulo Supi no Tata Steel 2023, em participação que foi amplamente acompanhada no País; ao fundo, o ex-campeão mundial Magnus Carlsen olha para o tabuleiro. Foto: Jurriaan Hoefsmit/Tata Steel

“Pode ser positivo, e isso requer investimento, mas, com a crescente, já estão vindo empresas. O Supi e a Júlia (Alboredo), por exemplo, que já estiveram nos maiores ratings (masculino e feminino) nacionais, fecharam patrocínios. Conforme vai tendo mais visibilidade, mais empresas patrocinam, e, para frente, podem surgir essas escolas”, diz. E no futuro, a popularidade pode até levar o xadrez para a televisão, opina: “Esse é o início da caminhada, mas ainda tem muito trabalho à frente. Se for crescendo, é possível que um dia aconteça. Mostrar o quanto pode ser emocionante para quem está acompanhando”.

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O Brasil já teve um dia o terceiro maior rating FIDE, com Henrique Mecking, o Mequinho; hoje, mesmo não sendo um dos polos do esporte, está entre as 30 federações com maior pontuação no ranking global e manda representantes para torneios de peso, exemplos de Supi e Júlia, no Tata Steel, e Alexandr Fier, atual melhor colocado do País, no Memorial Capablanca, e eles estarão na Copa do Mundo. Para voltar ao topo, é necessário planejamento a longo prazo. Trazer audiência é um passo importante para o crescimento, e os comunicadores, como Raffael e todos que trabalham nas coberturas, já perceberam isso.

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