Circula nas redes sociais um trecho do programa do âncora Tucker Carlson, da Fox News dos Estados Unidos, no qual um comentarista reproduz uma série de afirmações falsas relativas aos atos golpistas que resultaram na invasão e depredação das sedes dos três Poderes, em Brasília. No comentário, o jornalista Matthew Tyrmand diz que duas pessoas morreram durante a detenção da Polícia Federal e insinua que cenas de vandalismo foram arranjadas para incriminar “manifestantes democráticos” bolsonaristas. Nada disso é verdade.
Cerca de 1,5 mil pessoas detidas nos atos golpistas de 8 de janeiro foram levadas a uma detenção temporária em um ginásio na Academia Nacional da Polícia Federal. Como já mostrou o Estadão Verifica, não houve nenhuma morte ali durante a detenção e transporte dos suspeitos – que posteriormente foram levados para os presídios da Papuda e da Colmeia.
Em uma referência nazismo, Tyrmand classifica a detenção de “estabelecimento de campo de concentração”. O Estadão Verifica já assinalou em outra checagem que a Confederação Israelita do Brasil (Conib) repudia comparações do tipo. A expressão remete a condições insalubres, violentas e degradantes de aprisionamento e a crimes massivos e sistemáticos contra a humanidade e aos horrores do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
Conforme demonstraram ampla cobertura da imprensa e vídeos publicados por pessoas detidas no ginásio, a comparação com campos de concentração não tem base factual mínima nem razoabilidade. As condições a que foram submetidos os detidos foram vistoriadas e aprovadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O MPF informou em 10 de janeiro que “nenhuma irregularidade foi encontrada”.
Segundo o MPF, o ginásio tinha “banheiros limpos e arejados, femininos e masculinos, bebedouros, refeitório, sala para vistorias separadas por sexo, local e equipes para atendimento médico de prontidão, além de sala para atendimento de advogados, aos quais foi franqueado livre acesso ao local”. Ainda de acordo com o órgão, “não foram identificadas crianças ou adolescentes no local, tendo a autoridade policial informado que, uma vez identificados, os menores de idade foram imediatamente liberados na companhia de seus responsáveis, assim como idosos e pessoas com comorbidades”.
O advogado Belisário dos Santos Jr, ex-secretário da Justiça e de Assuntos Penitenciários de São Paulo, entendeu a detenção de mais de mil pessoas num mesmo local improvisado como uma ação necessária diante de circunstâncias especiais. “A quantidade de detidos foi compatível com as imagens das invasões e vandalismo nas sedes dos três Poderes”, considerou.
Integrante da Comissão de Direitos Humanos Paulo Evaristo Arns e do comitê executivo da Comissão Internacional de Juristas, ligada à ONU, o advogado considera descabidas – “até difíceis de comentar” – comparações da detenção no ginásio da PF com campos de concentração ou de prisioneiros de guerra, como fez o comentarista da Fox News. “As condições da detenção foram vistoriadas por várias entidades, que constataram que as necessidades básicas dos detidos foram supridas e seus direitos, respeitados – inclusive com rápida provisão de audiências de custódia”, disse.
Para Belisário, se houve algo que contrastou com o tratamento normal e esperado de pessoas detidas pela polícia foi a permissão para que mantivessem seus celulares e os usassem para até para gravar e postar vídeos em redes sociais – privilégio rotineiramente negado aos detidos.
Comentarista reproduz narrativa enganosa sobre ‘infiltrados’
No mesmo comentário, Tyrmand compara os ataques em Brasília ao episódio que entrou para a história como “o incêndio do Reichstag”. Atualmente, a maioria dos estudiosos da história alemã daquele período atribui o atentado que destruiu a antiga sede do parlamento em 1933 a um militante holandês atuando isoladamente, como um “lobo solitário”. Mas o ataque foi usado por Adolf Hitler, que ocupava o cargo de chanceler, e por seus aliados para culpar os comunistas, disseminar o temor de uma ameaça vermelha, conquistar poder ditatorial e estabelecer o regime nazista.
Abundantes evidências, colhidas por diversos veículos de imprensa e divulgadas pelos próprios autores do vandalismo, demonstram de que as invasões e a destruição na Esplanada dos Ministérios foram praticados por bolsonaristas que não aceitam a derrota eleitoral. O Estadão Verifica publicou diferentes checagens desmentindo a ação de “infiltrados” nos atos golpistas. Além disso, Ministério da Justiça afirma não haver qualquer informação sobre atos de “infiltrados” nos ataques do dia 8.
As ações de golpistas em Brasília podem ser enquadradas em artigos do Código Penal que tipificam crimes de incitação a insurreição militar e contra o Estado Democrático de Direito (artigos 286, 359-L, 359-M e 359-R). Pessoas e grupos engajados em atos desse tipo não atuam, portanto, como “manifestantes democráticos”, como os qualifica, falsamente, o comentarista da Fox News.
Do viés à invenção
Além de apresentar as fake news reproduzidas por Matthew Tyrmand, o próprio apresentador Tucker Carlson espalha a informação falsa de que as eleições de 2022 foram “claramente fraudadas” contra Bolsonaro e a favor de Lula. Essa mentira de Carlson, além de amplamente desbancada no Brasil, foi também refutada por veículos de imprensa e agências de checagem dos Estados Unidos e do Reino Unido.
A Fox é o canal a cabo líder de audiência dos Estados Unidos, com 2,3 milhões de expectadores em seu horário nobre diário, no qual o programa Tucker Carlson Tonight é atualmente o principal destaque. Como explicar que um veículo jornalístico combine numa fala de 50 segundos uma série de notícias falsas, de fácil checagem, como verdade factual?
O doutor em Comunicação e Semiótica José Luiz Aidar Prado, professor da PUC de São Paulo e coautor de Comunicação em Rede na Década do Ódio, afirma que trata-se de “uma distorção da vontade de credibilidade jornalística, que passa, em casos como esse, a se referir mais à vontade empresarial de satisfazer a expectativas subjetivas de um tipo de consumidor de ‘notícias’ do que à fidelidade a alguma verdade factual”.
O Estadão Verifica não conseguiu com a Fox News dos EUA e Matthew Tyrmand.
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