90 anos do Holocausto: Sobrevivente se refaz da guerra com museu ‘para não esquecer’

Ruth Sprung Tarasantchi recorda sem esforço dos horrores que viveu na infância, durante o holocausto nazista; aos 89 anos, ela se dedica a fazer do Museu Judaico um espaço para combater ‘tudo que há de ruim’ no mundo

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Foto do author Renato Vasconcelos
Por Renato Vasconcelos

Em um corredor estreito, de costas para uma proposta legislativa da Associação Brazil Livre ― cujo símbolo era uma suástica ornamentada com as palavras Deus, Família e Pátria ― Ruth Sprung Tarasantchi olha, aos 89 anos, para uma boneca de plástico levemente amassada, que há décadas foi uma de suas poucas posses. “Essa bonequinha é a que eu levei da Iugoslávia para a Itália, quando minha família fugiu”.

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Rut(h) ― cujo nome só ganhou o ‘H’ quando chegou ao Brasil ― nasceu em Sarajevo, na atual Bósnia-Herzegovina, ainda unificada sob a Iugoslávia. Sobrevivente do Holocausto, ela nasceu em outubro de 1933, meses após a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, em janeiro daquele ano, e considerado o marco inicial do genocídio de judeus.

Ainda criança, Ruth testemunhou o horror da ideologia nazista e acompanhou o antissemitismo ao longo das décadas, incluindo depois de ter emigrado para o Brasil, em 1947, onde se formou em artes plásticas, casou e ajudou a fundar o Museu Judaico de São Paulo, onde é diretora de acervo atualmente.

Diretora de acervo do Museu Judaico, na Bela Vista, em São Paulo, Ruth Sprung Tarasantchi mostra boneca que ganhou ainda criança na Iugoslávia. Foto: Léo Souza/ Estadão

“É inacreditável que, em todo mundo, [ainda] digam que o Holocausto não existiu. Como é que dizem que é mentira? Que nós inventamos isso?”, questiona, com um olhar expressivo por detrás dos óculos de armação grossa e lápis escuro.

Como começa um genocídio

O antissemitismo pujante em Berlim demorou um pouco mais a chegar na zona rural iugoslava. As memórias de Ruth dos primeiros anos de vida em Bugojno, cidade interiorana próxima a Sarajevo, são absolutamente normais. “Minha infância foi como a de qualquer criança. Eu ia a escola, tinha os amiguinhos da vizinhança”, relembra com clareza. “Até o começo da guerra, nós vivíamos normalmente”.

Embora a vida na “cidadezinha”, como se refere a Bugojno, tenha preservado os encantamentos da infância de Ruth, em outras partes da Europa a perseguição aos judeus já tinha se alastrado. Quando a Noite dos Cristais, em 9 de outubro de 1939, deu a largada para o recolhimento de judeus em campos de concentração pela Alemanha nazista, as preocupações da Ruth de 6 anos ainda eram as professoras da escola de freiras que frequentava, que tentavam a todo custo fazer a menina canhota escrever com a mão direita.

Mas um dia a realidade encontrou a família da menina em Bugojno. Com as tropas do Eixo, que começaram a transformar a Iugoslávia em um Estado fantoche da Alemanha nazista, chegou também o antissemitismo e a ideia de raça ariana. Os números são imprecisos, mas estima-se que dos cerca de 82 mil judeus que viviam no país antes da guerra, apenas 14 mil sobreviveram. A perseguição também foi implacável contra os sérvios e as etnias ciganas.

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“Quando começou o antissemitismo, jogavam fezes nas casas, brigavam... Pegaram meu avô, porque ele era comerciante e acharam que ele era ‘milhardário’. Arrancaram-lhe todas as unhas das mãos e dos pés, para que ele dissesse onde ele tinha guardado a grande quantidade de ouro que ele tinha. Ele tinha alguma coisa, normalmente, mas não uma enormidade de ouro. E ele não falou nada”, narra Ruth, que à época já tinha por volta dos 7 anos.

O avô só se salvou por causa da influência do pai de Ruth, que era o médico da “cidadezinha”. “Ele conseguiu entrar na prisão porque todos que estavam lá tinham crescido com ele. Quando ele encontrou meu avô, ele o ensinou a se fazer de louco. E foi assim que ele conseguiu sair da prisão”.

Peregrinação

A discriminação sentida pelos Sprung no interior da Iugoslávia é parte indissociável do Holocausto, de acordo com o coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba, Carlos Reiss. Embora a associação mais comum ao termo seja com os campos de concentração e o extermínio, o pesquisador aponta que são consideradas vítimas ou sobreviventes do Holocausto todos aqueles que sofreram perseguição, marginalização ou discriminação pelo regime nazista e seus colaboradores.

“O Holocausto é um genocídio. Tem suas características inéditas, mas é um genocídio. E como todo genocídio, ele é composto por etapas. É preciso entendê-lo como um processo, pois não haveria Auschwitz se não houvesse outras etapas anteriores”, explica Reiss, acrescentando que, em muitos casos, o que separou uma vítima de um sobrevivente foram “circunstâncias”.

Judeus vítimas do Holocausto são resgatados pelo Exército americano após libertação do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha. Foto: United States Army via The New York Times

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Para a família de Ruth, essa circunstância pode ter sido o episódio de violência sofrido pelo avô. Convencido de que a coisa iria piorar, o pai dela resolveu tirar toda a família de Bugojno de vez, iniciando uma peregrinação que terminou em São Paulo. Outros que decidiram ficar, confiaram que a terra onde seus pais nasceram, ao lado de seus vizinhos, era o local mais seguro. Mas foram alcançados pelo horror.

“Não tinham muitos judeus em Bugojno, talvez uns 30. [Meu pai] disse a todos: ‘vamos fugir também que o negócio vai ser feio’. Mas o amigo que morava perto disse: ‘imagina, aqui ninguém vai fazer [nada], nos conhecem desde sempre.”

Ruth estima que por volta de uma semana depois que deixou sua “cidadezinha”, os Ustashas - integrantes do movimento revolucionário de extrema direita croata, aliado dos nazistas durante a 2ª. Guerra - passaram recolhendo os homens e os jovens judeus e sérvios.

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“Não sei se você vai querer contar isso, mas eles degolaram [todos]. Parece que não mataram completamente, porque eles ficaram gritando a noite inteira e os camponeses se queixaram. Aí eles foram lá e jogaram cal virgem em cima deles”, narra a sobrevivente.

Caminhando pela sombra

Ruth é dona de sua própria história e narra os fatos com absoluta segurança e uma sobriedade na voz que a acompanha até mesmo os momentos mais tenebrosos relatados ― interrompidos apenas por alguma memória mais leve que a diverte ou algo que quer enfatizar. Embora esteja reconstituindo os passos que a Ruth de 7 ou 8 anos mais de 80 anos depois, ela é capaz de lembrar de detalhes com precisão, como o momento em que a família passou a utilizar documentos falsos para se deslocar.

Os Sprung tentaram sair do radar dos perseguidores ao chegar em Sarajevo, onde vivia a família de sua mãe. Percebendo que o cerco na capital bósnia também começava a se fechar, o pai dela procurou uma rota de fuga para Split, na atual Croácia, que parecia menos perigosa naquele momento. O motivo da escolha do pai por Split escapa à memória de Ruth, mas ela se mostraria acertada pouco tempo depois.

“Quando meu pai foi para Split, ele mandou documentos falsos para todos: os pais da minha mãe, os pais dele, uma irmã da minha mãe, meu primo, meu tio, minha tia e uma irmã dele que era casada e tinha dois filhos. Mas esses não quiseram usar”, conta Ruth, em um relato que lembra a situação com os antigos vizinhos em Bugojno.

Todos os pertences que Ruth levou da Iugoslávia couberam na maletinha que ela guarda até hoje. Foto: Léo Souza/ Estadão

“Imagina! Eu nasci aqui. Todo mundo na vizinhança me conhece. Eu fui na polícia e me disseram: ‘pode ficar seguro, ninguém vai te fazer nada’”, disse o tio de Ruth, narrado por ela.

“A história é que vieram os Ushastas e levaram eles para um campo de concentração. O primeiro a morrer foi ele. Depois foi minha tia. E meus primos [mostra com os dedos que eram dois] ainda ficaram um tempo vivos, soubemos disso, depois morreram. Todos morreram. A família toda.”

Os tios e primos de Ruth morreram no campo de concentração de Jasenovac, na Croácia, o maior da Iugoslávia.

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Em Split, então sob domínio italiano, o relato também é vago, mas o avô e o pai de Ruth são descobertos, e informados de que a Itália transportaria todos os judeus para seu território. A família não ficou junta na viagem ― mulheres e homens não podiam dormir juntos―, mas se reencontraram em Florença.

A vida no campo de concentração

A primeira parada dos Sprung na Itália foi Castelnuovo Don Bosco, uma cidade pequena perto de Turim. Por algum tempo, Ruth e dois meninos judeus foram enviados para uma escola interna, onde ela disse ter sofrido “bullying” por não falar italiano e por ter apenas uma malinha, a mesma que carregava durante a entrevista. Ela é reticente em dizer que a situação que viveu na escola era antissemitismo, mas o fato é que, desde que deixou Sarajevo, o pai havia proibido todos de se identificarem como judeus, a fim de não sofrerem represálias.

O período na escola foi curto. Com o avançar da guerra, os bombardeios se tornaram mais frequentes em Turim, e os alunos foram mandados de volta para suas famílias. Com pouco tempo, as autoridades italianas apresentaram novos planos para a comunidade judaica que havia deixado a Iugoslávia: uma estadia no campo de concentração de Ferramonti di Tarsia, na região da Calábria, no sul do país.

Ferramonti foi o maior entre os 15 campos mantidos pelo duce Benito Mussolini durante a 2.ª Guerra. Cerca de 3,8 mil judeus foram aprisionados no campo entre 1940 e 1943, dos quais somente 141 italianos. Além dos judeus, Ruth lembra de conviver com políticos franceses, padres e até chineses da tripulação de um barco apreendido pela Itália.

Campo de Concentração de Ferramonti, na Calábria, foi o maior dos quinze campos de internamento estabelecidos por Benito Mussolini. Foto: Adriana Carranca/ Estadão Conteúdo - 22/05/2016

“Ficamos lá por 7 meses. Era um local muito ruim. Tinha muito mosquito, e todo mundo pegou malária, menos eu, minha mãe e minha irmã”, conta.

O plano original no campo de Ferramonti era reunir os judeus da Itália e enviá-los para outros campos, na Alemanha e na Polônia, mas isso nunca chegou a acontecer. Uma revista Picture Post, guardada por Ruth desde o fim da guerra, noticiou a libertação dos prisioneiros em 23 de outubro de 1943. Outros presos em campos de concentração italianos, principalmente aqueles mais ao norte, onde os combates se prolongaram, não tiveram tanta sorte, como o químico e escritor italiano Primo Levi, enviado para Auschwitz.

‘Estou apavorada’

Antes de encontrar com Ruth pela primeira vez, perguntei à equipe do Museu Judaico de São Paulo, no encontro das ruas Avanhandava com a Martinho Prado, se ela teria alguma limitação para percorrer algumas das áreas da exposição para fazermos imagens, em decorrência da idade. A resposta foi que ela era “bem ágil”.

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Menos de meia-hora depois, quando nossa equipe já havia sido apresentada, ficou claro o que eles quiseram dizer. Além de uma vitalidade invejável para quem se aproxima dos 90 anos, Ruth se move com intimidade dentro do espaço do museu que ajudou a criar e a reunir boa parte do acervo.

“Essa taça foi perfurada por uma baioneta na Noite dos Cristais”, diz, apontando para a peça que aparenta ser de prata em uma das vitrines. “Esse relógio era de um menino que tinha 13 anos quando os alemães pegaram a família dele. Tinha sido um presente de Bar-Mitzvá, dado pelo pai. Ele manteve o relógio escondido em um buraco no sapato durante todo o tempo em que esteve com os alemães”.

Preservar a memória da cultura judaica no centro de São Paulo se tornou um dos objetivos da vida de Ruth. Foto: Léo Souza/ Estadão

Uma das fundadoras do museu, onde ainda atua como diretora de acervo, Ruth diz que ainda tem o objetivo de transformá-lo em um espaço contra “tudo que há de ruim no mundo”. Em frente a área de exposição sobre o holocausto, uma parede é dedicada a casos de violência contra grupos marginalizados ― há referências a crimes contra indígenas, travestis e negros, por exemplo ― em um paralelo difícil de não perceber.

“Aqui no museu, nós fazemos questão de pregar contra tudo que há de ruim”, disse Ruth, apontando para o mural, que fica de frente para um letreiro onde se lê: “lembrar e não esquecer”.

“Hoje, infelizmente, o antissemitismo está crescendo, mas eu lutei para que o nosso Museu Judaico surgisse durante 20 anos. É com isso que eu me refiz dos efeitos da guerra”.

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