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Alemanha se prepara para décadas de ‘guerra fria’ e confronto militar com a Rússia

Os líderes do país alertam sobre ameaças crescentes, mas o chanceler alemão Olaf Scholz tem receio de levar o Kremlin, e o seu próprio público, longe demais

Por Steven Erlanger e David E. Sanger

THE NEW YORK TIMES - O ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, passou a aconselhar os alemães a se preparar para um confronto com a Rússia — afirmando que a Alemanha deve reconstruir rapidamente suas Forças Armadas diante da possibilidade do presidente russo, Vladimir Putin, planejar não parar na fronteira ucraniana.

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As Forças Armadas da Rússia, afirmou Pistorius em uma série de entrevistas recentes, estão completamente ocupadas com a Ucrânia. Mas se houver uma trégua, e Putin tem alguns anos para redefinir seu cálculo, Pistorius acha que o líder russo considerará testar a unidade da Otan.

“Ninguém sabe como será ou se isso vai durar”, afirmou Pistorius sobre a atual guerra, argumentando a favor de um rápido aumento no tamanho das Forças Armadas da Alemanha e uma reposição de seu arsenal.

O chanceler alemão Olaf Scholz fala com o ministro da Defesa Boris Pistorius, segundo a partir da direita, durante um debate geral sobre o orçamento no parlamento alemão em 31 de janeiro de 2024 Foto: Ebrahim Noroozi/AP

Os alertas públicos de Pistorius refletem uma mudança significativa nos níveis mais graduados de liderança em um país que evitou ter uma força militar robusta desde o fim da Guerra Fria. O alarme está cada vez mais estridente, mas o público alemão continua sem se convencer de que a segurança da Alemanha e da Europa esteja ameaçada fundamentalmente por uma Rússia novamente agressiva.

O cargo de ministro da Defesa é com frequência um beco sem saída na política alemã. Mas o status de Pistorius como um dos políticos mais populares do país lhe dá liberdade para falar o que desagrada aos outros — incluindo seu chefe, Olaf Scholz.

Conforme o chanceler alemão se prepara para uma reunião com o presidente Joe Biden na Casa Branca, na sexta-feira, muitos no governo alemão consideram que não haverá volta à normalidade com a Rússia de Putin, antecipando pouco progresso este ano na Ucrânia e afirmando temer as consequências de uma vitória do líder russo por lá.

Esses temores combinam-se agora com discussões a respeito do que acontecerá à Otan se o ex-presidente Donald Trump for eleito e agir segundo seu instinto de retirar os Estados Unidos da aliança.

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A possibilidade da eleição de Trump para um segundo mandato faz muitas autoridades alemãs e suas contrapartes na Otan discutirem informalmente se a estrutura da aliança de quase 75 anos que elas planejam celebrar em Washington este ano é capaz de sobreviver sem os EUA no centro. Muitas autoridades alemãs afirmam que a melhor esperança estratégica de Putin é a fratura da Otan.

Para os alemães, em particular, trata-se de uma reversão avassaladora de pensamento. Apenas um ano atrás, a Otan celebrava um novo senso de propósito e uma nova unidade, e muitos previam confidencialmente que Putin teria pressa.

Mas agora, com os EUA imprevisíveis, a Rússia agressiva e a China empenhada, assim como uma guerra aparentemente estagnada na Ucrânia e um conflito profundamente impopular em Gaza, as autoridades alemãs estão começando a falar sobre a irrupção de um mundo novo, complicado e perturbador, com consequências severas para a segurança europeia e transatlântica.

Sua preocupação imediata constitui um crescente pessimismo em relação aos EUA continuarem a financiar a luta da Ucrânia justamente no momento em que a Alemanha, o segundo país que mais contribui, concordou em dobrar sua contribuição, para cerca de US$ 8,5 bilhões.

Soldados ucranianos próximos a um tanque russo nos arredores de Bakhmut em 29 de janeiro de 2024 Foto: Tyler Hicks/NYT

Agora, alguns colegas de Pistorius alertam que se o financiamento americano secar e a Rússia vencer, o alvo seguinte seria mais próximo a Berlim.

“A Ucrânia ser forçada a se render não satisfaria a fome de poder da Rússia”, disse na semana passada o chefe do serviço de inteligência da Alemanha, Bruno Kahl. “Se o Ocidente não demonstrar uma disposição clara para defender, Putin deixará de ver motivo para não atacar a Otan.”

Mas quando pressionados para se posicionar a respeito de um possível conflito com a Rússia, ou sobre o futuro da Otan, os políticos alemães são cautelosos.

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Nas décadas que passaram desde o fim da União Soviética, a maioria dos alemães se acostumou às noções de que a segurança de seu país estaria garantida se ele trabalhasse com a Rússia, não contra, e de que a China é uma parceira necessária, com um mercado crítico para os automóveis e equipamentos alemães.

Mesmo hoje, Scholz, um social-democrata, cujo partido buscou tradicionalmente manter relações decentes com Moscou, parece relutante em discutir o futuro vastamente mais conflituoso com a Rússia ou a China que os comandantes de defesa e os chefes de inteligência alemães descrevem tão vividamente.

Exceto por Pistorius, que era pouco conhecido até ser escolhido para ocupar o Ministério da Defesa, um ano atrás, poucos políticos abordam o assunto em público. Scholz é especialmente cuidadoso, zelando pela relação da Alemanha com os EUA e atento para não pressionar demais a Rússia e seu imprevisível presidente.

Dois anos atrás, Scholz declarou o início de uma nova era para a Alemanha — uma “Zeitenwende”, ou um ponto de inflexão histórico, na política de segurança de seu país, que, afirmou ele, seria marcado por uma mudança significativa nos gastos e no pensamento estratégico. Ele cumpriu uma promessa de alocar 100 bilhões de euros a mais para o gasto militar ao longo de quatro anos.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, em reunião com o presidente americano, Joe Biden, na Casa Branca, em 3 de março de 2023 Foto: Andrew Caballero-Reynolds/AFP

Este ano pela primeira vez a Alemanha gastará o equivalente a 2% de seu produto interno bruto em suas Forças Armadas, alcançando a meta com a qual todos os países da Otan concordaram em 2014, depois que a Rússia anexou a Crimeia, mas que muitos especialistas afirmam agora ser baixa demais. E a Alemanha se comprometeu em reforçar o flanco oriental da Otan contra a Rússia prometendo estacionar permanentemente uma brigada na Lituânia até 2027.

Ainda que de outras maneiras, Scholz se movimentou com grande cautela. Ele se opôs — juntamente com Biden — ao estabelecimento de um cronograma para a eventual entrada da Ucrânia na aliança.

O exemplo mais vívido do cuidado de Scholz é sua contínua recusa em fornecer para a Ucrânia um míssil de cruzeiro de longo alcance, de lançamento aéreo, chamado Taurus.

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No ano passado, Reino Unido e França deram à Ucrânia seu equivalente mais próximo, o Storm Shadow/SCALP, que foi usado para devastar navios russos em portos na Crimeia — e para forçar a Rússia a retirar sua frota. Biden concordou relutantemente em fornecer ATACMS, um míssil similar mas com alcance limitado a aproximadamente 160 quilômetros, para a Ucrânia no outono (Hemisfério Norte).

O Taurus tem mais de 480 quilômetros de alcance, o que concederia à Ucrânia possibilidade de usá-lo para atacar pontos profundos na Rússia. E Scholz não está disposto a correr esse risco — nem o Bundestag, que votou contra uma resolução solicitando a transferência. Ainda que a decisão pareça de acordo com a opinião pública alemã, Scholz quer evitar o assunto.

Mas os alemães também se preocupam com a possibilidade de Scholz permanecer relutante em atacar Putin com força demais.

Pesquisas mostram que os alemães querem ver Forças Armadas alemãs mais capazes. Mas apenas 38% dos entrevistados disseram querer seu país mais envolvido em crises internacionais, o índice mais baixo desde que a pergunta começou a ser feita, em 2017, de acordo com a Fundação Körber, que conduziu a sondagem. Nesse grupo, 76% afirmaram que o envolvimento deveria ser primeiramente diplomático, e 71% se posicionaram contra um papel de liderança militar para a Alemanha na Europa.

Autoridades militares alemãs provocaram indignação recentemente ao sugerir que seu país deve ser “kriegstüchtig”, que se traduz aproximadamente como a capacidade de travar e vencer uma guerra.

O legislador da oposição Norbert Röttgen, especialista em política externa dos democratas-cristãos, afirmou que o termo foi considerado um “exagero retórico” e foi rapidamente abandonado.

“Scholz sempre afirmou que ‘A Ucrânia não deve perder, mas a Rússia não pode vencer’, o que indicava que ele sempre pensou a respeito de um impasse que ocasionaria um processo diplomático”, afirmou Röttgen. “Ele considera a Rússia mais importante que todos os países entre nós e eles, desprovido de um senso europeu e de um possível papel como líder europeu.”

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante evento em Moscou em 31 de janeiro Foto: Maxim Shemetov/Reuters

Röttgen e outros críticos de Scholz pensam que ele está perdendo uma oportunidade histórica de liderar a criação de uma capacidade europeia de defesa menos dependente das Forças Armadas dos EUA, assim como dissuasão nuclear.

Mas Scholz claramente se sente mais confortável dependendo pesadamente de Washington, e graduadas autoridades alemãs afirmam que ele desconfia especialmente do presidente francês, Emmanuel Macron, que argumenta a favor de uma “autonomia estratégica” europeia. Macron encontrou novos seguidores no continente.

Mesmo a principal iniciativa de defesa europeia de Scholz, um sistema terrestre de defesa antiaérea contra mísseis balísticos conhecido como Sky Shield, depende de uma combinação de sistemas de mísseis americanos, americano-israelenses e alemães. Isso enfureceu franceses, italianos, espanhóis e poloneses, que não aderiram argumentando que um sistema italiano-francês deveria ser usado.

As ambições de Scholz também são entravadas pela economia alemã cada vez mais fraca — que encolheu 0,3% no ano passado, e aproximadamente o mesmo é esperado para 2024. Os custos da guerra na Ucrânia e os problemas econômicos da China — que atingiram com mais força os setor automotivo e a manufatura — exacerbaram o problema.

Ainda que Scholz reconheça que o mundo mudou, “ele não está dizendo que nós devemos também mudar junto”, afirmou o analista alemão Ulrich Speck. “Está dizendo que o mundo mudou e que nós vamos protegê-los.”

Mas fazer isso pode muito bem requerer mais gastos militares em níveis acima de 3% do PIB alemão. Por agora, poucos no partido de Scholz ousam sugerir ir tão longe.

Os alemães, mesmo os social-democratas, “se perceberam que a Alemanha vive no mundo real e que poder coercitivo é importante”, afirmou o especialista em Europa Charles Kupchan, da Universidade Georgetown. “Ao mesmo tempo”, afirmou ele “ainda há a esperança de que tudo isso não passe de um pesadelo e de que os alemães voltarão a despertar no mundo passado”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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