Como a pressão da Ucrânia por aviões de guerra para derrotar a Rússia pode agravar o conflito

Relutância do Ocidente é explicada pelas dificuldades técnicas e principalmente pela escalada que o conflito pode ganhar

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Por Renata Tranches

Em Londres, no dia 8, na sua segunda viagem ao exterior desde o início da guerra, o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, entregou um capacete da força aérea ao presidente da Câmara dos Comuns com a mensagem: “Nós temos liberdade, nos dê asas para protegê-la”. Cinco dias depois, seu ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, antes de entrar para uma reunião da Otan em Bruxelas, tirou do bolso do paletó um lenço de pano com o desenho de um caça e o exibiu a jornalistas.

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O pequeno teatro das autoridades ucranianas aponta para a próxima fronteira que Kiev busca cruzar na guerra de Vladimir Putin que entra em seu segundo ano: caças de combate. Os apelos por essas armas tiveram início antes mesmo das esteiras dos tanques enviados pelo Ocidente começarem a rodar nas linhas de frente ucranianas - o país começou a receber os tanques no dia 24.

Com o aumento gradual da sofisticação e da letalidade das armas enviadas à Ucrânia desde 24 de fevereiro do ano passado, o tema já não é mais um tabu entre os governos ocidentais. Se por um lado o americano Joe Biden recusou firmemente a ideia, por outro, na Europa, países como França, Reino Unido e Suécia se mostraram abertos à ela. A Rússia respondeu com ameaças de retaliação política e militar.

Ao longo de 12 meses, os países ocidentais não só aumentaram suas promessas de ajuda militar com as dezenas de tanques que despacharam à Ucrânia, como já enviaram centenas de veículos blindados, sistemas de defesa aéreos, drones, armas de longo alcance e muito mais. Receber caças, na visão de Kiev, seria o próximo passo. A relutância do Ocidente em fazê-lo, porém, é explicada, segundo analistas ouvidos pelo Estadão, pelas dificuldades técnicas e principalmente pela escalada que o conflito pode ganhar.

Um MiG-29 da Força Aérea Ucraniana sobrevoa a linha de frente perto de Bakhmut, região de Donetsk Foto: Libkos/AP - 11/2/2023

Escassez aérea

A transferência de equipamento militar ocidental, aliada à resiliência do país invadido, tem sido a chave para a resistência ucraniana até agora. Segundo o professor James Pritchett, diretor do programa de Estudos de Guerra da Universidade de Hull (Reino Unido), em número suficiente e com a doutrina certa, os caças ocidentais podem ser determinantes para a guerra aérea e, por consequência, a terrestre. Mas além de vários esquadrões, a Ucrânia precisaria de recursos de apoio, como aviões-tanque e técnicos treinados para a manutenção das aeronaves.

Para o especialista e repórter especial do Estadão Roberto Godoy, para fazer diferença, em uma primeira fase, a Ucrânia precisaria de toda uma aviação de combate - pelo menos 70 caças - para começar enfrentar a superioridade da Força Aérea da Rússia com seus Sukhoi Su-35 e MiG-31. O último, equipado com mísseis hipersônicos responsáveis pelos principais ataques à infraestrutura ucraniana. A atual frota da Ucrânia inclui, entre outros, jatos MiG-29 e Sukhois da era soviética.

O grupo de monitoramento holandês independente Oryx estimou, após 11 meses de guerra, que a Ucrânia havia perdido 53 aeronaves, ponderando que é difícil saber quantos ainda estão aptos a voar. De qualquer forma, segundo Godoy, a aviação ucraniana perdeu tantos caças que hoje avalia com muito critério antes de fazer um ataque, se ele não resultará em mais uma aeronave perdida.

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Kiev e alguns analistas argumentam que novos caças permitiriam aos ucranianos controlar melhor os céus e proteger suas forças terrestres. Mas a capacidade sem precedentes de atacar dentro do território russo alimenta o temor de uma escalada.

Logística e treinamento

A questão crítica, segundo o especialista em Ucrânia e Rússia da Universidade do Alabama em Birmingham (EUA) George Liber, é o tipo de caça e quando ele seria enviado. “Se os EUA fornecerem F-16 (Fighting Falcon) de fabricação americana, as tripulações ucranianas precisarão de pelo menos seis meses de treinamento. Portanto, a decisão de armar os ucranianos com F-16 precisaria ser tomada imediatamente”, diz o especialista, de origem ucraniana, se referindo ao modelo mais especulado até agora.

Se a opção dos EUA e outros países da Otan for a de enviar MiGs de fabricação soviética, que muitos aliados no Leste Europeu ainda possuem, o período de treinamento seria mais curto e a decisão poderia ser tomada mais adiante, na avaliação de Liber.

O F-16 é considerado um dos caças mais confiáveis do mundo. Na avaliação de Godoy, uma máquina de guerra muito eficiente e relativamente fácil, ainda que não simples, de ser pilotada, mas seriam necessários mais do que seis meses de treino. Ele explica que a preparação tradicional de um piloto ocidental inclui uma formação acadêmica de três a quatro anos e mais três anos e meio de especialização para se tornar totalmente operacional.

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“Apesar de serem considerados bons pilotos, os ucranianos são de gerações condicionadas primeiro, ao equipamento soviético, depois ao russo. Conceitualmente, é diferente (com relação ao equipamento americano)”, explica Godoy.

Pritchett lembra que Washington vendeu F-16 para vários aliados da Otan e para nações não pertencentes à Aliança Atlântica que poderiam tentar fornecer o armamento à Ucrânia enquanto buscam substituir suas frotas por novos F-35, como afirmou o governo da Holanda. Embora o governo Biden tenha afastado a possibilidade de enviar F-16, outros países não. Mas eles precisariam de um sinal verde de Washington, já que se trata de um equipamento americano.

A decisão, segundo o analista britânico, ainda depende de vários fatores no solo e da nova ofensiva que a Rússia está preparando. “É difícil prever até quando seria viável enviar caças para Kiev. Para os ucranianos, porém, quanto antes, melhor, especialmente se a ofensiva terrestre russa ganhar impulso”, afirma Pritchett.

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, disse que o Reino Unido poderia treinar pilotos de caça ucranianos e seu secretário de Defesa avaliaria quais jatos poderiam fornecer eventualmente. A Força Aérea britânica opera principalmente o caça Eurofighter Typhoon, o que, na avaliação de Godoy, seria inviável, por se tratar de um caça muito caro - cerca de US$ 120 milhões - e ainda mais complicado para um piloto ucraniano ser treinado.

Na França, o presidente Emmanuel Macron disse que “nenhuma possibilidade estava descartada”. Em entrevista à agência France Presse, um oficial próximo ao comando da Força Aérea do país que não quis ser identificado afirmou que uma opção seria enviar 13 caças franceses do tipo Mirage 2000-C, desenvolvidos pela Dassault, desativados recentemente. Segundo a fonte, a Força Aérea precisaria, primeiro, recondicionar os aviões.

Um já conhecido dos brasileiros, o Gripen, da sueca Saab, também entrou na lista dos considerados, especialmente por voar em altitudes mais baixas e receber manutenção em pistas de pouso mais curtas e irregulares, como as possíveis hoje na Ucrânia. Godoy lembra que a família Gripen foi desenvolvida para enfrentar a aviação da Rússia, mas duvida do interesse da Suécia por um envolvimento direto. “Não faz muito sentido, porque a Suécia está o tempo todo encarando os russos do outro lado da fronteira”, avalia.

Urgência dos tanques

A Ucrânia começou a receber os principais tanques de batalha dos EUA e aliados do Ocidente. A Polônia enviou pelo menos dois na sexta-feira. Eles serão cruciais para ajudar as forças ucranianas a passar pelas fortificações russas e retomar o território perdido nos últimos meses. Os tanques são críticos para a ofensiva que Kiev tenta preparar para o fim do inverno ou início da primavera no Hemisfério Norte e recuperar territórios perdidos até o meio do ano.

Em uma análise publicada pelo site do Council on Foreign Relations, o analista desse centro de estudos Max Boot afirma que tanques modernos, como os Leopoards 2 doados a Kiev, oferecem esperança de os ucranianos penetrarem as posições russas sem sofrer um grande número de baixas.

Por esse motivo, segundo Liber, os jatos são importantes para a Ucrânia “fechar os céus” das aeronaves russas e apoiar suas operações terrestres contra os russos entrincheirados. “Na minha opinião, os EUA e outros países da Otan estão fornecendo armas à Ucrânia em um ritmo muito lento e com quantidades muito menores do que o governo ucraniano solicitou”, afirma Liber.

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Uma contraofensiva bem sucedida nas regiões de Kherson e Kharkiv permitiu à Ucrânia recuperar cerca de 20% do território ocupado pela Rússia no início de 2022. Mas no sul e no leste, as forças russas mantêm a hegemonia sobre os territórios ocupados logo no início da invasão, além da Crimeia e partes do Donbas que ocupou desde 2014.

Próxima linha-vermelha

Se o envio de caças vier a se concretizar, analistas tentam avaliar qual seria a próxima linha-vermelha do conflito. “É difícil pensar em armas muito mais sofisticadas do que caças a jato de última geração”, afirma Pritchett. “Alguns mísseis e munições avançados podem ser considerados, mas isso seria a vanguarda dos sistemas e muito além do que seria razoavelmente esperado a ser enviado para uma potência de fora da Otan (ou até mesmo dentro dela).”

Em imagem de arquivo, caças MiG-29 russos de um grupo acrobático em exibição durante uma feira em Zhukovsky, na Rússia Foto: Tatyana Makeyeva/Reuters - 25/7/2021

Para Godoy, além de prorrogar o conflito indefinidamente, o envio de caças para a Ucrânia poderia estabelecer como próxima fronteira o uso de uma arma nuclear tática no campo de batalha, a chamada arma nuclear de guerra. “Se passarem os caças, a próxima etapa, ou é uma guerra total, de EUA e Otan contra Rússia, numa escalada, ou é o uso da arma tática nuclear no teatro de operações da Ucrânia, o que seria altamente arriscado, porque não sabemos qual seria o tamanho da resposta”, avalia.

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