O clima em Washington na semana passada foi amistoso e parecia promissor. De um lado, o presidente Donald Trump exaltou as relações entre EUA e Japão como estratégicas. Do outro, o primeiro-ministro Shigeru Ishiba tentava demonstrar simpatia e até mesmo um pouco de bajulação. Ao fim da reunião na Casa Branca, apesar do esforço, o líder japonês voltou para casa avisado que poderia ser alvo de tarifas sobre os produtos que vende aos americanos.
O encontro agridoce em Washington é um exemplo do quanto o compromisso de Washington com seus aliados tem se tornado incerto. Pedra angular da política americana para a Ásia, o Japão tem sido um aliado preferencial da Casa Branca há quase 80 anos. Agora, com o retorno de Trump, e sem a certeza de que essa solidez vai continuar Tóquio busca melhorar relações com um antigo rival, num movimento diplomático que faria queixos mais antigos caírem de espanto: a China.
Em movimento cauteloso, Pequim e Tóquio concordaram em dar início à negociações num tema sensível da relação, a segurança. Em paralelo, uma delegação do Exército de Libertação Popular Chinês fez uma rara visita à tropas japonesas para promover a “confiança mútua” e “intercâmbios em defesa”, conforme disseram autoridades dos dois lados.
“A China e o Japão estão se aproximando um do outro com cautela”, afirma Lizzi Lee, pesquisadora no Centro de Análise da China do Asia Society Policy Institute, sobre a movimentação das últimas semanas. “As recentes conversas de alto nível foram além das saudações cerimoniais e abordaram questões difíceis, como preocupações com a segurança e atritos econômicos”.
Ela cita como exemplo as reuniões do ministro das Relações Exteriores do Japão, Takeshi Iwaya, com a chanceler chinesa Wang Yi e o primeiro-ministro Li Qiang, em Pequim, pouco antes de Donald Trump tomar posse nos EUA. Foi durante a visita que os dois lados concordaram com as negociações em segurança.

“Não foi apenas conversa fiada. Sinaliza um esforço para resolver questões espinhosas, como, por exemplo, reivindicações territoriais”, afirma Lizze Lee, que vê no movimento uma tentativa pragmática de “recalibrar” as relações para tratar dos interesses imediatos no momento em que os Estados Unidos se tornam imprevisíveis sob Donald Trump.
Nesse cenário, a palavra “intercâmbio” tem aparecido com frequência no noticiário asiático após conversas de alto escalão entre Pequim e Tóquio. Durante sua visita, Takeshi Iwaya concordou em promover trocas em áreas como esportes, indústrias culturais e direitos das mulheres. Além de anunciar a flexibilização dos requisitos de vistos para turistas — passo que a China havia dado com isenção de um mês para visitantes japoneses.
“É importante que tanto o Japão quanto a China cumpram suas responsabilidades e avancem juntos em busca da paz e da prosperidade da região”, disse Iwaya em Pequim. Enquanto o primeiro-ministro chinês Li Qiang aproveitou sua presença para dizer que “atualmente, as relações China-Japão estão em um período crítico de melhoria e desenvolvimento”.
Intercâmbio e confiança mútua
No âmbito militar, o “intercâmbio” entre as tropas discutido pelos ministros da Defesa às margens de uma cúpula no Laos, no fim do ano passado, resultou numa rara visita do Exército de Libertação Popular Chinês (ELP) ao Japão — a primeira em cinco anos.
Braço armado do Partido Comunista Chinês, o ELP disse que a ideia é a aumentar “o entendimento e a confiança mútua”. As mesmas palavras (”entendimento” e “confiança”) foram usadas pelo porta-voz do Japão Yoshimasa Hayashi ao afirmar que a comunicação entre comandantes contribui para relações estáveis entre os vizinhos asiáticos.
Os esforços recentes incluíram ainda a viagem de líderes do Partido Liberal Democrata (PLD), no poder no Japão, a convite do Partido Comunista da China (PCC). A cooperação entre as siglas governistas, retomada após sete anos, foi descrita em artigo no Global Times como alternativa para o diálogo franco e a confiança no momento em que o protecionismo dos EUA “expõe a China e o Japão a desafios externos comuns”.
Essa busca por entendimento em várias frentes ocorre após o encontro do presidente da China, Xi Jinping, com o primeiro-ministro do Japão, Shigeru Ishiba, às margens da cúpula da APEC, o fórum para Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, em Lima, logo após a vitória de Donald Trump nos EUA.
Para Lizzi Lee, a volta do “America First” de Trump, marcada por por medidas comerciais agressivas e uma visão cética das alianças, força países como o Japão a repensar alinhamentos tradicionais.
Uma aliança pragmática
“Quando o apoio dos EUA se torna menos previsível, os países podem se apoiar em Pequim para parcerias econômicas pragmáticas, mesmo que permaneçam cautelosos em relação às suas ambições de segurança. Não se trata de um realinhamento completo. Pelo contrário, é uma tática de proteção que busca equilibrar uma aliança sólida com os EUA e os benefícios de envolver a China em questões que afetam diretamente esses países”, afirma.
Essa cautela com as ambições chinesas foi expressa por Shigeru Ishiba no encontro com Xi Jinping. Ele deixou clara suas preocupações com o cerco militar às Ilhas Senkaku, controladas pelo Japão, e com a postura cada vez mais ostensiva de Pequim no Mar do Sul da China. “Há muitas diferenças de opinião entre China e Japão. Apesar disso, concordamos em ter mais reuniões”, resumiu Ishiba.
Agora a expectativa é que Tóquio receba, no mês que vem, o encontro de ministros das Relações Exteriores de Japão, China e Coreia do Sul. A plataforma trilateral para cooperação foi retomada no ano passado, após ser interrompida em meio à disputas territoriais e divergências estratégicas, que expõem os limites para aproximação entre os vizinhos asiáticos.
Ameaças tarifárias
A mistura de aproximação pragmática e desconfiança mútua se deve à rivalidade geopolítica, alimentada pela percepção de ameaça, as disputas territoriais e os ressentimentos históricos. Segundo Alana Camoça, professora de Relações Internacionais e coordenadora do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa combinação é um dos principais obstáculos para uma aproximação mais sólida entre Japão e China.
À lista de barreiras, soma-se o alinhamento entre Tóquio e Washington desde o fim da 2ª Guerra. “O Japão desempenha um papel fundamental para a ação dos EUA na Ásia, o que limita sua margem de manobra para um engajamento mais próximo com Pequim”, afirma Alana Camoça, destacando a forte presença de bases militares americanas em território japonês, principalmente Okinawa.
O Japão tem o maior número de tropas americanas fora dos Estados Unidos: são quase 53 mil militares da ativa entre as forças terrestre, naval e aérea, segundo dados mais recentes do Departamento de Defesa. Só em Okinawa, as bases americanas ocupam área equivalente a 18% da ilha.
“Os EUA estão totalmente comprometidos com a segurança do Japão”, garantiu Donald Trump ao lado do primeiro-ministro Shigeru Ishiba, que elogiou como “grande líder”, em meio em meio às promessas de estreitar a cooperação para deter a “agressão” chinesa.

Enquanto Donald Trump dispara ameaças contra aliados dos Estados Unidos, Ishiba estava disposto a causar boa impressão num primeiro encontro, marcado por trocas de elogios. E conseguiu. Saiu ileso da Casa Branca, embora tenha ouvido que a imposição de tarifas ainda está sobre a mesa.
Trump pressionou Ishiba pelo déficit (US$ 68,5 bilhões) que os Estados Unidos têm com o Japão, mas disse que a balança comercial poderia ser resolvida “rapidamente”. Mantendo o tom amigável do encontro, ele se mostrou otimista com as promessas de que Tóquio poderia elevar os investimentos nos EUA à cifra de US$ 1 trilhão.
Mesmo que consiga se manter longe da mira, o Japão ainda pode ser afetado indiretamente, caso os Estados Unidos decidam impor tarifas ao México e Canadá, onde a sua indústria automobilística investiu pesado nas montadoras que abastecem o mercado americano. O impacto para empresas japonesas é estimado em US$ 10 bilhões.
É nesse caos provocado pelo “America First” que a China busca se apresentar ao mundo como um parceiro mais confiável que os Estados Unidos. Mas para os vizinhos asiáticos, que tem observado com preocupação suas ações ostensivas em águas contestadas, o que falta é justamente a confiança.
“Essa dúvida sobre a solidez dos compromissos dos EUA, como aconteceu também no primeiro mandato de Trump, abre espaço para a necessidade de maior autonomia estratégica por parte do Japão”, afirma Alana Camoça. “De forma indireta, isso pode estimular o esforço mais pragmático em relação à China, ainda que as barreiras históricas e securitárias persistam”.
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Cicatrizes históricas
Essas barreiras históricas têm suas origens nas guerras Sino-Japonesas e persistem há décadas. “A presença japonesa no século da humilhação chinesa é até hoje um dos principais pontos de tensão”, aponta Pedro Steenhagen, PhD em Política Internacional pela Fudan University, em Shangai. “As invasões japonesas e o massacre de chineses, particularmente durante a 2ª Guerra, criaram um sentimento anti-Japão que persiste”.
E não é só na China que o nacionalismo se coloca como um obstáculo para a melhora da relação entre os vizinhos. “Os nacionalistas, que tendem a enxergar a Pequim como ameaça, tem ganhado projeção na política japonesa. Isso fortalece a posição mais crítica e cautelosa com Pequim”, observa Alana Camoço.
“Ao mesmo tempo, há o pragmatismo econômico que impede o distanciamento absoluto porque a Cina permanece como como um dos principais parceiros comerciais do Japão. Essa dualidade se reflete na abordagem diplomática que busca equilibrar cooperação econômica e contenção estratégica”, conclui.
Até aqui, a dinâmica “hot economics, cold politics” (economia quente, política fria) se mantém, ainda que a movimentação das últimas semanas aponte para abertura ao diálogo. Resta saber, afirma Pedro Steenhagen, até que ponto é possível avançar. “A dúvida é se, no segundo governo Trump, haverá a busca por uma mudança estruturante, que altere as relações sino-japonesas do ponto de vista político, ou se a estratégia é pontual”.