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‘Brasil voltou’ de Lula custa R$ 27 milhões e arranha imagem do País no exterior

Presidente brasileiro passou 46 dias em viagens que custaram ao erário R$ 27 milhões; analistas veem agendas como positivas, mas alertam que falas do presidente prejudicam diplomacia

Foto do author Jéssica Petrovna
Por Jéssica Petrovna
Atualização:

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva repete com frequência que o “Brasil voltou” à arena global. Mas nesse retorno, o petista encontrou um outro mundo, muito diferente do de 2010. Mais tenso, conflituoso e polarizado, o cenário internacional apresenta novos desafios, para os quais o petista recorre a velhas soluções. Com isso, sua diplomacia presidencial, segundo analistas, tem sido acompanhada por controvérsias, que arranham a imagem projetada pelo próprio governo.

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Nestes sete meses de governo, Lula passou cerca de um mês e meio (46 dias) em viagem. As visitas de Estado custaram ao erário R$ 27 milhões. Segundo o Planalto, as viagens renderam um retorno diretos e indiretos de R$ 115 bilhões. Em nota, o governo afirma que “captou, em média, RS 3,6 bilhões em investimentos por dia de viagem ao exterior”, sem deixar claro se esses valores já vinham sendo negociados antes.

Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam, no entanto, que as controvérsias como a garantia de que Vladimir Putin não será preso se vier ao Brasil, a possível saída do País do Tribunal Penal Internacional e a reabilitação política do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, atrapalham essa retomada da diplomacia brasileira na arena global.

Nesta sexta-feira, 15, o petista dá início a mais um tour. A primeira parada, de dois dias, será em Havana para cúpula do G77+China – uma coalizão de países em desenvolvimento –, depois ele seguirá Nova York onde fará sua reestreia na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Em pouco mais de 250 dias de mandato, Lula fez 20 viagens internacionais por quase todos os continentes. Entre os vizinhos sul-americanos, as potências Estados Unidos e China, Japão, Índia, Oriente Médio, Europa e África foram, ao todo, 46 dias fora do Brasil — ausência que tem um custo.

Presidente Lula fala com a imprensa depois da cúpula do G-20, Nova Délhi, Índia, 11 de setembro de 2023 . Foto: REUTERS/Anushree Fadnavis

Este mês, o presidente foi criticado por ia a Nova Délhi, onde participou da cúpula do G-20, sem visitar o Rio Grande do Sul que foi devastado por um ciclone mortal. Para piorar, o vídeo em que a primeira-dama Janja fala que vai “sair dançando” ao desembarcar na Índia enquanto o Brasil sofria com a tragédia só agravou a crise.

As polêmicas de Lula

Nova Délhi é um exemplo de como as as viagens têm sido marcadas por tropeços do presidente. São falas controvertidas, muitas vezes de improviso, que causam ruído e confundem os observadores sobre os rumos dessa nova política externa.

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“As viagens são corretas, mas o governo deve se preocupar em dosar a quantidade e garantir que sejam bem preparadas no sentido de não arruinar os efeitos com declarações extemporâneas”, avalia Rubens Ricupero, diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington e ex-ministro.

São falhas na “execução”, afirma Ricupero ao citar como exemplo outra polêmica que marcou a última viagem do petista à Índia. Em entrevista, o Lula disse que o presidente russo Vladimir Putin poderia vir ao Brasil sem medo de ser detido, apesar de ser alvo de um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional pelos crimes de sua guerra contra Ucrânia. A reação foi negativa e, obrigado a recuar, Lula questionou a participação do Brasil no Tribunal de Haia.

“Quando sai dos textos escritos e resolve improvisar, ele às vezes comete erros que, de certa forma tiram o foco”, pontuou Rubens Ricupero. “A declaração sobre o TPI era secundária, não tinha muito a ver com a conferência dedicada à presidência rotativa do Brasil no G-20. Em vez de se concentrar nisso e nas prioridades brasileiras para o G-20, essa fala acabou dominando os comentários. É um exemplo de como a forma que se faz é tão importante como o que se faz”, arrematou.

O ex-embaixador e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, concorda que “do ponto de vista da política externa, as viagens são corretas”, mas também vê com ressalva as falas de Lula.

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Isso porque minimizar o Tribunal Penal Internacional não foi um deslize isolado do presidente. Antes disso, o petista já recebeu críticas dos Estados Unidos e da Europa ao responsabilizar a Ucrânia pela guerra. Assim como criou atritos com o presidente do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, e com o líder do Uruguai, Luis Lacalle Pou, ao relativizar a democracia para defender o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro.

“O presidente tem feito muitas declarações que causam alguma surpresa no exterior”, avalia Rubens Barbosa. “Isso desgasta a imagem, do ponto de vista do presidente e eu acho que a palavra do presidente é muito importante para uma potência média, como o Brasil”.

Para Barbosa, as falas de Lula preocupam porque são conflitantes, inclusive, com a política externa brasileira, como no caso da guerra. “Quando nós ouvimos as declarações do presidente parece que o Brasil está tomando um lado quando a política do governo brasileiro não é de tomar lado, é de equidistância e independência”, enfatiza o diplomata.

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Na ONU, o Brasil votou contra a Rússia na resolução que condenou a invasão e instou o Kremlin a recolher as tropas. O petista, por sua vez, já disse que o presidente ucraniano Volodmir Zelenski é tão culpado pela guerra quanto Vladimir Putin.

Em outra afirmação controvertida, quando voltava da China, Lula acusou Europa e Estados Unidos de dar “contribuição para a continuidade dessa guerra”, em referência a fornecimento de armas pela Otan. Na época, a Casa Branca rebateu que o brasileiro “papagueia a propaganda da Rússia e da China” enquanto a União Europeia destacou que a ajuda militar visa a “legítima defesa” de Kiev.

A preocupação é que há sinais que poderiam indicar uma ideologização da política externa, o que seria muito negativo nesse mundo dividido em que nós vivemos hoje.

Ex-embaixador Rubens Barbosa

A Diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Laura Trajber Waisbich, pondera que, nem toda declaração controvertida significa uma crise diplomática, mas avalia que a Ucrânia é um ponto mais sensível e que a repetição dessas polêmicas têm potencial para ameaçar a credibilidade brasileira. “O Lula é uma pessoa que tem essa característica da espontaneidade. Eu acho que isso pode sim causar problemas. [...] É uma crise mais recente, extremamente polarizada e são deslizes que geram ruídos desnecessários”.

Para evitar esses sinais trocados, o Brasil precisaria ser mais claro em relação à política externa, sustentam os diplomatas ouvidos pelo Estadão. Rubens Ricupero argumenta que, passados nove meses de governo, ainda não há uma exposição clara do que o Brasil defende para o mundo, com exceção da agenda ambiental que é bem avaliada. Nesse sentido, a Assembleia Geral das Nações Unidas pode ser uma boa oportunidade para o presidente Lula que, seguindo a tradição, vai abrir os trabalhos em Nova York.

“De tudo, o que tem de mais valioso é uma política nítida contra o aquecimento global. Não é isenta de contradições, como a prospecção de explorar petróleo na margem equatorial mas, de maneira geral, é uma política correta, acompanhada de ações internas”, destaca Ricupero antes de listar os problemas.

A posição sobre a guerra é contraditória, as declarações sobre Putin tendem a ser benevolentes, a busca por uma nova ordem ao lado da China é, pelo menos ambígua, a questão Maduro é lamentável e a posição sobre a Nicarágua também não é clara.

Ex-embaixador Rubens Ricupero

Custo e retorno

Em termos financeiros, as viagens custaram aos cofres públicos pouco mais de R$27 milhões até meados de julho, quando o presidente foi à Europa para a cúpula entre a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União Europeia (UE), em Bruxelas. A cifra vai crescer quando forem contabilizados os gastos das viagens mais recentes. O governo garante que ela é pequena perto do retorno em investimentos.

Em nota, a presidência afirma que Lula vem “trabalhando incansavelmente para trazer de volta o protagonismo do Brasil no cenário internacional” e destaca os investimentos no Fundo Amazônia — iniciativa suspensa no gestão anterior e retomada após a posse do novo governo com aportes dos EUA, Reino Unido e União Europeia. Entre os benefícios, o governo cita ainda os investimentos internacionais em projetos de energia, combustíveis renováveis e carros elétricos. Além da abertura de novos mercados para agropecuária brasileira e valorização do real frente ao dólar.

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A proximidade com Pequim

A questão China, é especialmente sensível. Em meio à disputa com os Estados Unidos que colocou o mundo à beira de uma nova Guerra Fria, Pequim aumentou sua influência na América Latina e assumiu o posto de maior parceiro comercial no Brasil. Lula, no entanto, parece interessado em uma parceria mais ampla, vista com preocupação.

“Ninguém nega que o Brasil é ocidental, mas há uma grande dependência do Brasil em relação a Ásia, 37% dos nosso produtos agrícolas vão para China”, ressalta Rubens Barbosa. “Temos uma relação importante com os Estados Unidos e uma relação importante com a China então temos que preservar os dois lados, não tomar partido ideológico acima do interesse nacional”.

Quando esteve na China, em abril, o petista defendeu a parceria por uma nova governança global. “Os nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais”, introduziu ele. “Temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas”, concluiu Lula.

A reforma do Conselho de Segurança da ONU é um pleito histórico da diplomacia brasileira, visto por especialistas como uma reivindicação justa já que apenas China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia são membros permanentes do órgão decisório das Nações Unidas. “É uma agenda de todos os países em desenvolvimento por mais voz e representatividade nas organizações que, depois de 70 estão superadas porque o equilíbrio de poder que existia logo depois da 2ª Guerra mudou”, corrobora Rubens Barbosa.

No entanto, a ideia de buscar uma nova governança global junto com a China, acende o alerta para o diplomata Ricupero. “A ONU e suas instituições não estão funcionando bem. O Conselho está paralisado e o sistema internacional não foi capaz de promover uma resposta adequado a problemas cuja resolução depende do conjunto de países, como o aquecimento global e a pandemia. Então que uma nova ordem é necessária eu não tenho dúvida”, contextualiza.

“O problema é buscar uma nova ordem com a China, que não tem nada a acrescentar na maior parte desses problemas”, enfatiza o ex-embaixador ao lembrar como exemplo a crise do clima, que tem a China como maior responsável pelas emissões de gases do efeito estufa no mundo. “Não vejo porque buscar essa aliança com a China. O Brasil já tem um peso específico para promover essas causas por si só, especialmente agora na presidência rotativa do G-20″, concluiu.

O difícil equilíbrio do sul global

O Brasil ainda corre o risco de ser levado à reboque ao se alinhar a uma potência de maior peso no tabuleiro global, alerta a coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP, Fernanda Magnotta, que vê esse equilíbrio no sul global como um dos grandes desafios para a política externa do Lula 3.

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Para Magnotta, o Brasil às vezes se alia ao eixo antiocidental, principalmente China e Rússia, por entender que esse lado defende um pluralismo maior na política internacional. Entretanto, embora essa percepção seja verdadeira em alguma medida, multipolaridade não tem o mesmo significado para todo mundo. Enquanto a posição brasileira é por mais representatividade no sistema internacional, Moscou e Pequim parecem interessados em virar protagonistas, com um víeis mais oligárquico de política externa.

“A crítica de se faz é que o Brasil possa servir como massa de manobra de interesses de países mais poderosos desse global e, em alguma medida, ser levado a reboque para uma agenda que não necessariamente é a mesma que a nossa”, alerta Fernanda Magnotta.

Foi o que aconteceu na viagem à África do Sul para a Cúpula do Brics (Brasil Rússia Índia China África do Sul), quando o Brasil cedeu à pressão chinesa para apoiar à ampliação do bloco em troca de um poio de Pequim à ampliação do Conselho de Segurança da ONU, movimento criticado pelo diplomata Rubens Barbosa.

Presidente chinês Xi Jinping na cúpula do Brics, Johannesburgo, África do Sul, 24 de agosto de 2023.  Foto: EFE/EPA/ALET PRETORIUS / POOL

“O papel do Brasil ficou diluída no âmbito do Brics, que foi de cinco para 11 países e vai aumentar ainda mais. Acredito que a mudança na posição do Brasil, que era contra a expansão, contraria os nossos interesses a médio e longo prazo. Inclusive, porque essa ampliação tem países como Irã, Egito, Arábia Saudita... Os novos países-membros têm, em sua maioria, uma postura muito militante contra o ocidente. Então nós estamos participando de um grupo que é claramente antiocidental”, apontou o ex-embaixador.

A resposta para esse difícil equilíbrio estaria em focar no que realmente interessa. “É preciso adequar a comunicação da política externa e as lógicas de prioridade dessa política, que deve ser orientada pelo pragmatismo e ancorada nas características e nos dilemas do século 21. Construir ou reforçar a ideia de nós contra eles, sul contra o norte, China contra Estados Unidos não vai levar o Brasil para perto de seus interesses”, sustenta Fernanda Magnotta.

A pesquisadora Laura Trajber Waisbich concorda que o Brasil precisa “recalibrar” sua política externa. Ela avalia que, embora não dê para fechar os olhos para a guerra, o país precisa moderar a energia investida na questão Ucrânia. “O Brasil terá ganhos mais significativos e imediatos se focar em outros temas que são espinhosos [...] e que o país tem mas capacidade de articular parceiros, criar consensos e promover mudanças concretas”, sugeriu.

A ideia de focar nas áreas em que o Brasil tem autoridade é reforçada por Rubens Barbosa, que aponta o caminho: segurança alimentar, segurança energética com foco em fontes renováveis e a crise climática. “São três áreas que o Brasil tem o que dizer”, enfatizou.

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