PUBLICIDADE

Estado Islâmico aterroriza Moçambique e ameaça produção de gás em meio à guerra na Ucrânia

Conflito já deixou cerca de 4 mil mortos, e aproximadamente 1 milhão de pessoas fugiram de suas casas

Por Sudarsan Raghavan

PEMBA, MOÇAMBIQUE - As cicatrizes do garoto circulam seu pescoço logo abaixo na linha das orelhas, marcas mórbidas de cortes de navalha deixadas pelos militantes do Estado Islâmico que dominaram seu vilarejo. Os militantes tentaram recrutá-lo. Quando ele se recusou, a tortura começou. Ele tinha 13 anos.

PUBLICIDADE

Mas o trauma mais profundo do menino emerge quando ele fala do que aconteceu com seu tio. Os olhos dele se apagam e sua voz baixa de volume, quase desaparecendo na brisa.

“Decapitaram meu tio naquele dia, junto com outros”, recordou-se R.A., atualmente com 16 anos e vivendo em um campo de refugiados. “Ele suplicou por ajuda, mas eu não consegui fazer nada. Eu estava assustado demais. Eu ouvi o facão atingindo seu pescoço, ouvi seus berros.”

No norte do Moçambique, um dos mais novos braços do Estado Islâmico está incitando uma insurgência brutal, que irrompe longe dos olhares, em pequenos vilarejos e florestas remotas, desde 2017. Mulheres são sequestradas e mantidas como escravas sexuais, meninos são obrigados a virar soldados, decapitações são armas do terror. Até aqui o conflito deixou cerca de 4 mil mortos, e aproximadamente 1 milhão de pessoas fugiram de suas casas, o que separou incontáveis famílias.

R.A. mostra as cicatrizes no pescoço e no peito deixadas por seus captores do Estado Islâmico em uma vila perto de Pemba, Moçambique Foto: Washington Post photo by Salwan Georges - 2/09/2022

Vítimas relataram suas histórias ao Washington Post sob a condição de ser identificadas apenas pelo primeiro nome e, no caso de R.A., por suas iniciais, porque seu primeiro nome é incomum. Todas as fontes ouvidas nesta reportagem ainda vivem com medo dos militantes.

A violência e a instabilidade também ameaçam uma das reservas mais lucrativas de gás natural do planeta. Conforme a guerra da Rússia na Ucrânia faz os preços do gás aumentar, ocasionando temores sobre possível escassez em toda a Europa, as reservas de gás natural liquefeito, ou GNL, do Moçambique, as terceiras maiores na África, são consideradas vitais.

Mesmo antes da invasão russa à Ucrânia, em fevereiro, o governo dos Estados Unidos aprovou cerca de US$ 6 bilhões (quase R$ 32 bilhões) em empréstimos e seguros contra riscos para ajudar a nascente indústria moçambicana de gás natural a decolar.

Publicidade

Empresas americanas e europeias de petróleo e gás, incluindo a ExxonMobil e a gigante francesa TotalEnergies, mantêm projetos multibilionários na província rica em recursos de Cabo Delgado, no extremo norte do país. Mas os cinco anos de insurgência islâmica na região fizeram cessar a maior parte da produção.

Nova fronteira

Governos europeus e os EUA estão tentando ajudar as forças moçambicanas a combater os militantes - e a manter o fluxo de gás. “Eles impediram completamente as operações de GNL de avançar”, afirmou uma autoridade da Embaixada dos EUA em Moçambique, na capital, Maputo, falando sob condição de anonimato para discutir livremente a situação. “Há certamente uma nova urgência pelo GNL em razão do que ocorre na Ucrânia.”

A África se tornou uma nova fronteira para grupos islamistas militantes nos anos recentes, com a Al-Qaeda o Estado Islâmico se espalhando rapidamente pelo continente. Apesar desses grupos ainda perseguirem aspirações globais, eles estão envolvidos em conflitos locais, capitalizando sobre governos fracos e explorando antigos ressentimentos e desigualdades.

PUBLICIDADE

No ano passado, o Departamento de Estado americano designou o Estado Islâmico no Moçambique, ou EI-Moçambique, como uma organização terrorista estrangeira, apesar de o grupo possuir, acredita-se, menos de 500 combatentes. Os EUA também impuseram sanções sobre o líder do grupo, Abu Yasir Hassan, apesar de não estar claro se ele ainda está no comando, ou mesmo se ainda está vivo.

O Comando dos EUA para a África está treinando soldados moçambicanos para melhorar suas capacidades em contraterrorismo. A União Europeia está gastando US$ 89 milhões para treinar e equipar 11 unidades de reação rápida do Exército moçambicano, em parte porque empresas de petróleo de Portugal e Itália também operam com a TotalEnergies.

Pemba é a capital da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, onde uma insurgência islâmica ocorre desde o fim de 2017 Foto: Washington Post photo by Salwan Georges

Os militantes “se situam em uma região crucial, então sua influência tem sido bem grande”, afirmou a autoridade americana. “Para criar horror não é necessário muita gente.”

O EI-Moçambique sempre foi pequeno em termos relativos, mas a precariedade das Forças Armadas moçambicanas permitiu ao grupo avançar rapidamente nos anos recentes, tomando cidades e vilarejos e impingindo um castigo terrível sobre comunidades de todo o norte do país.

Publicidade

R.A. afirmou que os militantes decapitaram seu tio e outros homens de seu vilarejo porque eles não revelaram posições das forças moçambicanas. Depois das execuções, dois militantes espancaram o jovem com as coronhas de seus fuzis, enquanto ele estava de mãos amarradas, sentado sob o sol. R.A. afirmou que, quando se recusou a pegar em armas em nome dos militantes, eles trouxeram a navalha.

“Fui torturado por duas horas”, recordou-se R.A., que é alto, esguio e usava shorts jeans e chinelos vermelhos quando conversou com a reportagem. Enquanto ele narrava a história, o ritmo de suas palavras ficava mais lento, e seu olhar se perdia no chão.

Não foi possível verificar independentemente o suplício de R.A., mas relatos similares foram feitos por outras vítimas entrevistadas pelo Post no norte do Moçambique no mês passado e corroborados por relatos de trabalhadores de saúde e ativistas comunitários. O Post também analisou imagens explícitas publicadas em redes sociais que registraram momentos que transcorreram logo após ataques dos militantes na região.

Quando os extremistas se cansaram de torturá-lo, afirmou R.A., ele foi forçado a caminhar várias horas até sua base na selva, com sangue escorrendo pelo tórax.

Raízes da rebelião

A insurgência começou em outubro de 2017, incitada pela mistura combustível entre pobreza, desigualdade e radicalização islamista. Os moradores de Cabo Delgado se sentem isolados há muito, e o sentimento persistiu mesmo depois que as jazidas de gás natural e minérios foram descobertas na região.

“Esta insurgência é primeiramente e acima de tudo uma rebelião de jovens da região frustrados e marginalizados, de pescadores e de mineiros locais que viram seus meios de vida se extinguir”, afirmou Dino Mahtani, ex-vice-diretor para África do International Crisis Group (ICG). Exclusão econômica se combinou com extremismo islamista na região.

“A guerra veio de fora”, afirmou o xeque Nasrullahi Dula, um dos líderes da comunidade muçulmana no Moçambique, apontando para clérigos ultraconservadores do Quênia e da Tanzânia que instalaram madrassas no país em 2010, que começaram a radicalizar homens jovens em Cabo Delgado, onde a maior parte da população é muçulmana. “Eles ensinavam o contrário do que nós pregamos. Eles ensinaram que mulheres não são nada e que o governo não deve ser respeitado.”

Publicidade

Jovens militantes começaram a criticar líderes religiosos mais moderados, como Dula, e pressionaram por um banimento de bebidas alcoólicas e pela proibição de trabalho às mulheres. Seu ressentimento aumentou à medida que as elites do grupo étnico Makonde, do presidente Filipe Nyusi, asseguraram para si contratos de negócios na província, em detrimento de membros das minorias étnicas Mwani e Makua, afirmou o ICG em um relatório publicado no ano passado. As tensões étnicas vinham fervilhando desde a época da colônia portuguesa.

R.A. caminha para casa em uma vila perto de Pemba, Moçambique Foto: Washington Post foto por Salwan Georges - 2/09/2022

O descontentamento local se aprofundou com a descoberta de jazidas de rubi e gás natural. O governo ordenou a retirada de muitos moradores de suas terras para dar espaço a concessões para empresas estrangeiras. Os preços dos aluguéis e das commodities foram às alturas. Os extremistas “encontraram campo fértil para recrutar jovens desempregados e frustrados”, afirmou o sociólogo moçambicano João Feijó, que estuda as raízes da guerra.

No início de 2017, o governo acionou a polícia para retirar milhares de mineiros artesanais de uma mina comercial de rubi. A polícia “queimou casas, estuprou mulheres e homens, espancou e torturou”, afirmou Feijó. “Subitamente, as autoridades excluíram os jovens de todas essas possibilidades de ganhar a vida. Mas não ofereceram nenhuma alternativa.”

O gabinete da presidência do Moçambique, o Ministério da Defesa do país, o governo de Cabo Delgado e instâncias locais de autoridade não responderam pedidos do Post por comentários ou entrevistas.

Quando a insurreição começou, meses depois, alguns dos primeiros recrutas dos militantes eram mineiros, de acordo com diplomatas ocidentais e analistas.

Estado Islâmico

Em 2018, o Estado Islâmico tinha abarcado os militantes, que passaram a contar com tanzanianos e outros estrangeiros em suas fileiras, incluindo desertores de grupos afiliados à Al-Qaeda na África Oriental, afirmaram analistas. Alguns tanzanianos se tornaram os atuais líderes, enquanto os militantes de menor graduação são na maioria moçambicanos, principalmente jovens de etnia Mwani ou Makua.

Não está clara a profundidade da ligação do EI-Moçambique com a liderança central do Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Os militantes no país empunham a emblemática bandeira negra do EI e juraram fidelidade à rede terrorista dois anos atrás. Nas redes sociais e em sua revista online, os líderes do Estado Islâmico elogiaram ataques recentes no Moçambique, incluindo ações contra cristãos.

Publicidade

“Existe tráfego de informação”, afirmou a autoridade da embaixada americana em Maputo. “Provavelmente, trata-se de um braço mais independente do EI do que outros, mas as ligações são reais o suficiente para apontarmos.”

Uma luta internacional

Em 2019, desesperado para conter a insurgência, o governo moçambicano contratou mercenários russos do Wagner Group, que é comandado por um oligarca com laços estreitos com o presidente russo, Vladimir Putin. Mas o infame exército privado, que agora combate na Ucrânia e em vários outros países africanos, partiu depois de alguns meses, após sofrer baixas pesadas, de acordo com diplomatas ocidentais e analistas.

Moçambique pediu ajuda, então, para Ruanda e outros países do sul da África, cujas forças entraram no conflito no ano passado. Líderes regionais temem que a violência possa transbordar para seus países e desestabilizar ainda mais a costa da África Oriental, já assolada por outros grupos terroristas.

As forças africanas conjuntas — mais bem treinadas e equipadas do que suas equivalentes moçambicanas — expulsaram o EI-Moçambique de cidades e vilarejos no norte que o grupo militante havia dominado no ano passado, incluindo Palma, o epicentro da exploração de gás natural. Mas os insurgentes expandiram sua presença para novas áreas, incluindo distritos no sul da província próximos à capital regional, Pemba, e realizaram ataques dentro da Tanzânia.

Os militantes usam táticas de guerrilha, escondendo-se dentro de comunidades locais ou nas vastas florestas de Cabo Delgado. Em pequenos grupos, de aproximadamente dez combatentes, eles têm realizado constantes ataques-relâmpago desde maio, quando os líderes do Estado Islâmico declararam o EI-Moçambique um braço autônomo operando dentro de sua própria “província”.

Um menino refugiado passa por tendas numa aldeia perto de Pemba Foto: Washington Post photo by Salwan Georges - 2/09/2022

“Neste momento, é absolutamente impossível para eles controlar grandes cidades, populações ou até dominar uma pequena faixa de território por mais de 24 horas”, afirmou o brigadeiro general Nuno Lemos Pires, que até recentemente comandou a missão militar da União Europeia encarregada de treinar as unidades do Exército moçambicano. “Dito isto, não significa que as coisas estão sob controle.”

Em visita a Moçambique, no mês passado, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, anunciou US$ 15 milhões (quase R$ 80 milhões) em novos financiamentos para as forças africanas conjuntas — poucos dias após os militantes islâmicos decapitarem seis civis e matarem uma freira italiana na Província de Nampula. Borrell qualificou os ataques como “um cruel lembrete de que a luta contra o terrorismo não acabou e que, infelizmente, o terrorismo está se espalhando”.

Publicidade

A violência impediu organizações de ajuda humanitária de dar auxílio a dezenas de milhares de pessoas que fugiram de suas casas nos meses recentes. Cerca de 60% dos deslocados são crianças. Várias clínicas médicas e escolas foram fechadas ou destruídas. Mais de meio milhão de pessoas estão passando fome, de acordo com as Nações Unidas.

“A situação ainda é volátil”, afirmou Phipps Campira, diretor de operações da ONG Save the Children. “Ataques esporádicos estão desestabilizando nossos esforços de chegar às pessoas deslocadas.”

Complicando ainda mais as coisas, o foco internacional sobre a Ucrânia tem diminuído a ajuda por aqui, assim como em outras partes do mundo. Doadores forneceram menos de 60% dos US$ 388 milhões (mais de R$ 2 bilhões) pretendidos pelas Nações Unidas este ano, de acordo com dados da ONU, tornando difícil ajudar até os refugiados que conseguem chegar aos campos instalados nas regiões mais seguras. “Tem dias que eles não comem”, afirmou Campira.

Um longo rastro de terror

Quando o EI-Moçambique dominou a cidade de Mocímboa da Praia, em 2020, militantes logo apareceram na casa de Ulenca. Sob a mira de armas de fogo, ela foi obrigada, com duas primas, a entrar em um carro. Elas foram levadas para uma base, onde se juntaram a outras mulheres e meninas. Posteriormente elas foram separadas e levadas para outras bases, lembra-se Ulenca, que nunca voltou a ver suas primas.

Depois de uma caminhada de três dias, Ulenca chegou à segunda base. Outras 30 mulheres estavam no local — e rapidamente ficou claro por quê. Ulenca disse que foi entregue a um tanzaniano de 24 anos, de nome de guerra Fawzani. Ulenca, que tinha 20 anos na época, deveria se tornar sua “esposa”. Naquela noite, quando ela se recusou a fazer sexo, Fawzani a espancou com uma vara de bambu e a estuprou.

“Todos os militantes estupram as mulheres”, afirmou com voz trêmula Ulenca, hoje com 22 anos. “Depois de cada estupro, eu rezava a Deus para que meu sofrimento parasse, Ele me levasse de volta ao meu lar, e eu reencontrasse minha família.”

Ela viveu dois anos na base.

Publicidade

Os militantes eram em sua maioria moçambicanos, mas seus líderes, recordou-se Ulenca, eram da Tanzânia. Muitos falavam língua suaíli, que ela consegue entender, assim como outras línguas locais. Também havia estrangeiros de outras partes.

Ulenca, de 22 anos, volta para casa em Pemba; vítima do terror  Foto: Washington Post photo by Salwan Georges

A maioria dos militantes carregava fuzis AK-47, afirmou Ulenca. Eles realizavam exercícios militares diariamente e cavavam trincheiras profundas para se proteger de ataques de helicóptero. Muitos usavam uniformes roubados de soldados do Exército moçambicano.

“Eles falavam: ‘O Islã é a única religião. Nós queremos estabelecer um Estado islâmico’”, afirmou ela, lembrando-se do que alguns militantes lhe diziam.

Ulenca disse que testemunhou mais de dez execuções, incluindo de várias mulheres. Alguns dos mortos eram homens que se recusaram a lutar nas fileiras dos insurgentes, outros eram pessoas que tinham tentado escapar. As mulheres levaram tiros na nuca. Os homens foram decapitados.

“Todos na base eram obrigados a assistir”, afirmou Ulenca. “Era uma lição para que outros não cometessem erros.” Duas outras mulheres mantidas em bases diferentes afirmaram ter testemunhado atrocidades similares.

Ana em sua casa com suas duas filhas em Pemba  Foto: Washington Post photo by Salwan Georges - 2/09/2022

Ana, de 25 anos, foi forçada a assistir, acompanhada de suas duas filhas pequenas, a decapitação de seu marido. Ela disse que só não foi estuprada porque os militantes pensaram que ela havia enlouquecido.

Forças internacionais podem ter detido o impulso dos militantes, mas sua brutalidade continua. A maioria das pessoas em campo diz não perceber nenhum tipo de solução militar para o conflito.

Publicidade

Os EUA e a UE estão gastando milhões para ajudar a desenvolver Cabo Delgado — construindo escolas e criando empregos para evitar que homens jovens se juntem aos militantes. Sob pressão internacional, o governo moçambicano aprovou um plano de reconstrução, reconhecendo tacitamente que sua própria negligência contribuiu para a insurgência.

“Os problemas fundamentais que causaram isso foram resolvidos? É claro que não”, afirmou Pires. “Temos de dar o passo enorme de lutar ainda por muito, muito tempo.” As vítimas carregarão seus traumas eternamente.

R.A. afirmou que, quando chegou à base na selva, foi amarrado e espancado novamente. Seus agressores não eram muito mais velhos que ele. A maioria carregava armas de fogo e facões. No terceiro dia, segundo seu cálculo, enquanto os militantes tiravam um cochilo, dois outros jovens prisioneiros se desamarraram e também libertaram R.A. “Enquanto corríamos, sempre olhávamos para trás para ver se eles estavam nos perseguindo”, lembrou-se ele.

Ulenca escapou em maio. Naquele mês, os militantes estavam perdendo terreno. Durante um bombardeio, ela e outra mulher conseguiram fugir. Ulenca afirmou que elas caminharam por 17 horas, até encontrar uma posição do Exército moçambicano.

Ana escapou com as filhas em abril, quando elas saíram da base para buscar lenha. Ancha, hoje com 5 anos, mal se recorda do que aconteceu com seu pai. Mas Amina, de 8 anos, não consegue esquecer. “Eles mataram meu pai”, afirmou ela aparentando timidez. “Ainda penso nisso quando vou dormir.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.