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EUA vão pagar preço alto por fazer amizade com premiê da Índia; leia a análise

Modi coordena o maior ataque contra a democracia, a sociedade civil e os direitos das minorias em pelo menos 40 anos na Índia

Por Maya Jasanoff*
Atualização:

THE NEW YORK TIMES – Na quinta-feira, a Casa Branca estenderá o tapete vermelho para o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para “afirmar a parceria profunda e próxima entre Estados Unidos e Índia” e “fortalecer o compromisso compartilhado entre os nossos dois países por um Indo-Pacífico livre, aberto, próspero e seguro”. Um jantar de Estado e um discurso de Modi a uma sessão conjunta do Congresso coroarão meses de louvores à Índia vindos de todos os lados, de Bill Gates à secretária do Comércio, Gina Raimondo. A mensagem não poderia ser mais direta: na 2.ª Guerra Fria, contra a China, os EUA querem os indianos do seu lado.

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Como americana de origem indiana, eu vejo com bons olhos as transformações econômicas na Índia, que, durante o período de minha vida, fizeram despencar o número de pessoas vivendo em extrema pobreza, ampliaram a classe média e modernizaram a infraestrutura do país (mas não o suficiente para evitar o terrível acidente ferroviário este mês).

Estou feliz, também, que a crescente proeminência da Índia e da diáspora indiana nos EUA tenha mitigado a ignorância e os estereótipos que encontrei com tanta frequência enquanto eu amadurecia, quando as pessoas rejeitavam a comida apimentada, se constrangiam com a pobreza, confundiam a religião “hindu” com a língua “hindi” e mal conseguiam localizar a Índia no mapa.

Encontro do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi (à esq.), e presidente dos EUA, Joe Biden (à dir.), na Casa Branca, em imagem desta quinta-feira, 22. Aproximação visa aliança para conter China Foto: Elizabeth Frantz/Reuters

Os EUA devem há muito um conhecimento mais profundo e abrangente da Índia. O alcance de Modi — líder eleito democraticamente do país mais populoso do mundo, com índices de aprovação com os quais presidentes americanos só podem sonhar — parece, superficialmente, fazer bastante sentido diplomaticamente.

Mas veja o que os americanos precisam saber a respeito da Índia de Modi: armado com uma doutrina espinhosa de nacionalismo hindu, Modi tem coordenado o maior ataque contra a democracia, a sociedade civil e os direitos das minorias em pelo menos 40 anos na Índia. Ele entregou prosperidade e orgulho nacional para alguns poucos, mas autoritarismo e repressão para muitos outros — o que deveria inquietar todos nós.

Desde que Modi assumiu o poder, em 2014, a afirmação anteriormente orgulhosa da Índia enquanto sociedade livre e democrática colapsou em várias frentes. Entre as 180 nações ranqueadas no Índice de Liberdade de Imprensa de 2023, a Índia ocupa a 161.ª posição, meras três colocações acima da Rússia.

Sua posição no Índice de Liberdade Acadêmica despencou desde que Modi assumiu o poder — colocando o país em um caminho que remete aos rumos de outras autocracias eleitorais. O índice Liberdade no Mundo detectou uma constante erosão nos direitos políticos e nas liberdades civis dos cidadãos indianos. No Índice de Democracia, da Unidade de Inteligência da Economist, a Índia descambou diretamente para as posições das “democracias imperfeitas”.

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Um documento administrativo do governo indiano rejeita essas métricas, afirmando que elas “decorrem de percepções”. Infelizmente, não é mera “percepção” o fato de o governo assediar sistematicamente seus críticos — revirando escritórios de institutos de análise, ONGs e organizações de imprensa, restringindo liberdades de ir e vir e pressionando com processos judiciais descabidos — mais notavelmente contra o líder opositor Rahul Gandhi, que foi removido do Parlamento recentemente após ser condenado por uma acusação disparatada, de ter difamado todas as pessoas chamadas “Modi.” Não é mera “percepção” que a história muçulmana foi rasgada das cartilhas do currículo nacional, que cidades com nomes islâmicos foram rebatizadas e que o único Estados de maioria muçulmana, Jammu e Kashmir, foi despido de sua autonomia.

Comentaristas ocidentais entusiasmados com a “nova Índia” tendem a ignorar esses ultrajes, como distrações do crescimento econômico da Índia do potencial de investimento no país. Mas também há indicadores perturbadores por lá. O índice de mulheres que participam do mercado de trabalho é de pífios 20% e tem diminuído durante o mandato de Modi.

Primeira-dama americana, Jill Biden, primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o presidente dos EUA, Joe Biden, acenam para público. Imagem foi feita na Casa Branca, nesta quinta-feira, 22 Foto: Andrew Caballero-Reynolds/AFP

A quantidade de riqueza acumulada pelo 1% mais rico cresceu desde que ele assumiu, colocando-se atualmente em 40,5%, graças a um capitalismo de comparsas que remete às oligarquias russas. O desemprego está aumentando, assim como os preços de alimentos básicos, e o investimento do governo em saúde pública vem estagnando. Quanto à disposição da Índia em participar de esforços de combate às mudanças climáticas — uma das maiores esperanças do governo Biden — o governo indiano tem reprimido ativistas ambientais e acaba de remover a Teoria da Evolução e a tabela periódica do currículo de estudantes menores de 16 anos em meio ao seu contínuo ataque contra a ciência.

As políticas da Índia de Modi também estão afetando comunidades, locais de trabalho e universidades nos EUA, conforme a diáspora indiana cresce. Em Edison, Nova Jersey, participantes da parada anual do Dia da Índia, em agosto, desfilaram dirigindo uma carregadeira motorizada, um trator similar a uma escavadeira, adornada com imagens de Modi e um ministro indiano de extrema direita que ordenou a demolição de residências e comércios de muçulmanos, transformando esses veículos em símbolos de ódio tão provocativos quanto os nós de forca ou cruzes em chamas ostentados em encontros da Ku Klux Klan.

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No Google, hindus de casta superior invocaram tendenciosamente “hindufobia” para suspender um convite à ativista dalit Thenmozhi Soundararajan para falar na empresa, acusando-a de disseminar discurso de ódio. Pessoas envolvidas em uma importante conferência acadêmica criticando o nacionalismo hindu foram bombardeadas com ameaças de estupro e morte. Existem atualmente mais de 200 comitês dentro dos EUA do braço internacional da organização nacionalista hindu de inspiração fascista Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), da qual Modi é associado de longa data.

Os EUA têm um longo e deplorável histórico de apoiar regimes violentos e autoritários — incluindo o do Paquistão, o arquirrival da Índia, durante uma guerra amplamente classificada como genocida no Paquistão Oriental, hoje Bangladesh. Washington desconsiderou consistentemente abusos de direitos humanos e retrocessos da democracia em aliados estratégicos, incluindo Israel e Turquia.

O convite a Modi, podem afirmar alguns diplomatas, não tem intenção de louvá-lo nem ao seu regime; busca, em vez disso, fortalecer importantes relações entre os dois países e seus cidadãos em um momento geopolítico crítico.

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Mas não devemos nos enganar. Modi — que antes de se tornar primeiro-ministro teve um visto negado aos EUA por supostamente tolerar um massacre de muçulmanos, em 2002 — fez de si mesmo a cara de seu país, sorrindo benignamente nos cartazes pendurados em todos os cruzamentos, grudados nas laterais dos pontos de ônibus e anunciados em incontáveis páginas de internet. Nós podemos ter certeza de que os ensaios fotográficos com os dignatários de Washington figurarão proeminentemente em sua campanha pela reeleição, no próximo ano. Muito mais incerto é se Modi entregará o tipo de parceria estratégica ou econômica que os americanos buscam.

Nós não deveríamos levantar a Índia como espelho para os EUA — cujos próprios problemas abundantes facilitam para as legiões de seguidores de Modi acusar seus críticos de hipocrisia, racismo e neocolonialismo

Maneiras mais saudáveis de se envolver com a Índia começam compreendendo que a versão de Índia de Modi é menos desvirtuada que os EUA de Donald Trump, mesmo que o premiê indiano tenha sido mais bem-sucedido em convencer a mídia e as elites globais a aceitá-la. (Os dois líderes celebraram entusiasticamente um ao outro em comícios em estádios lotados em Houston e Ahmedabad, Índia.)

As organizações de imprensa e as instituições de pesquisa dos EUA devem continuar a apoiar constatações de fatos e reportagens, o que é vital para se contrapor à propaganda, à desinformação e às mentiras divulgadas pelo governo indiano a respeito de todo e qualquer tema, de abusos de direitos humanos a números de mortes por covid-19. Empresas que buscam fazer negócios na Índia deveriam insistir para que seus parceiros sustentem valores compartilhados e práticas de não discriminação. O Vale do Silício pode fazer mais para reagir contra a política digital cada vez mais autocrática na Índia, para não falar em opor-se aos pedidos de censura — que o Twitter notoriamente não atendeu em relação a um documentário crítico a Modi veiculado recentemente pela BBC.

Legisladores americanos deveriam aprovar leis que tornem castas categorias protegidas e se educar o suficiente para evitar erros como o cometido recentemente pela Assembleia Geral de Illinois, quando o organismo estabeleceu um Conselho Consultivo Indo-Americano usando termos que marginalizam ofensivamente os muçulmanos. Empregadores deveriam reconhecer que apelos pela identidade hindu e denúncias de “hindufobia” podem ter raízes em campanhas antiminorias e fundamentadas em casteísmo. Administradores de universidades deveriam estar preparados para esforços de facções alinhadas a Modi de censurar discursos e pesquisas de docentes, estudantes e convidados.

Também é importante reconhecer a diversidade, em todos os sentidos, da diáspora indo-americana — que abrange progressistas como Pramila Jayapal e Ro Khanna; e conservadores como Nikki Haley e Vivek Ramaswamy — e lembrar que os indo-americanos são um subconjunto desproporcionalmente rico e bem escolarizado da diáspora sul-asiática mais ampla, cujos membros possuem necessidades e interesses distintos.

Nós não deveríamos levantar a Índia como espelho para os EUA — cujos próprios problemas abundantes facilitam para as legiões de seguidores de Modi acusar seus críticos de hipocrisia, racismo e neocolonialismo. É comum olhar para a história do fascismo europeu em busca de paralelos ao rompimento na democracia dos EUA nos anos recentes, mas a Índia constitui um guia perturbador a respeito de como o autoritarismo é capaz de sabotar uma democracia multiétnica na era da internet.

Similaridades não faltam: uma elite intocável, aumento na desigualdade económica, ressentimentos étnicos facilmente mobilizáveis e um ambiente de informação transformado. Uma área especificamente objetiva para comparar é a resiliência — ou sua falta — de um Judiciário antes independente, que Modi tem manobrado para tolher.

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Como os EUA, a Índia é uma democracia extraordinária, diversa e plural, com talentos e potenciais incríveis — e há muita coisa, em princípio, capaz de unir essas duas nações para o bem. Mas quando o presidente de uma democracia trôpega anda de mãos dadas com um premiê dedicado a fazer tropeçar a sua, o projeto da liberdade global parece um passo mais próximo do colapso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Maya Jasanoff é professora de história em Harvard

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