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Grupo sírio anteriormente ligado à al-Qaeda busca identidade mais branda

Hayat Tahrir al-Sham recebeu destaque dez anos atrás como a mais formidável formação rebelde islâmica tentando derrubar o governo do presidente Bashar Assad

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Por Por Kareem Fahim

IDLIB, Síria — Os militantes islâmicos atacaram a emissora de rádio durante anos: porque ela tocava música, porque contratava mulheres, porque seus valores liberais representavam uma ameaça para os fanáticos armados da Síria.

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Mas, recentemente, os ataques à emissora cessaram, e o inimigo dela, um grupo militante antes ligado à al-Qaeda chamado Hayat Tahrir al-Sham, está tentando convencer os sírios e o mundo que seus valores não são mais tão radicais e repressivos quanto antes.

O grupo, também conhecido como HTS, recebeu destaque dez anos atrás como a mais formidável formação rebelde islâmica tentando derrubar o governo do presidente Bashar Assad. A organização passou a representar as forças sombrias em metástase durante a guerra civil na Síria: um movimento jihadista que atraís combatentes extremistas de todo o mundo e buscava estabelecer um estado islâmico.

Um produtor da Radio Fresh verifica os níveis de áudio no dia 17 de outubro no estúdio da emissora na cidade de Salqin, na província de Idlib Foto: Nicole Tung/Washington Post.

Agora o grupo diz que seu foco foi deslocado para a oferta de serviços a milhões de pessoas na província de Idlib, controlada pelos rebeldes na Síria, por meio de um nascente governo. Eles romperam os laços com a al-Qaeda cinco anos atrás e dizem estar reprimindo outros grupos extremistas. O fundador do HTS, um jihadista veterano antes visto constantemente em uniforme militar, é visto atualmente usando ternos.

“Aquela facção que costumava nos atacar está tentando mostrar às pessoas que é moderada", disse Abdullah Klido, diretor executivo da emissora de rádio, chamada Radio Fresh. “Estão tentando organizar as coisas para se apresentarem à imagem de um estado.”

O experimento em andamento em Idlib proporciona um raro vislumbre de como um movimento militante se transforma (e muda de cara) para sobreviver.

O HTS tem sido pragmático, reconhecendo a necessidade de cultivar o apoio local, de acordo com analistas. O grupo tem sido calculista, usando uma retórica de combate ao extremismo na esperança de agradar aos Estados Unidos e a outros governos que ainda os classificam como grupo terrorista.

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O objetivo é garantir sua posição de destaque em meio a uma constelação de organizações disputando o poder na Síria pós-guerra e tentando se tornar “insubstituível", disse Orwa Ajjoub, analista sênior da consultoria de risco político Center for Operational Analysis and Research.

Muitos em Idlib se perguntam a respeito do estado que os militantes estão construindo aceleradamente recebendo pouca ou nenhuma participação da população.

A província foi transformada: ainda não é um estado, mas um lugar se assentando em uma rotina ordenada. Guardas de trânsito vigiam os cruzamentos. Ônibus transportam estudantes e trabalhadores. Os cidadãos formam filas nos ministérios ou nas companhias de serviços públicos, ou se ocupam de tarefas necessárias e corriqueiras.

Mas os governantes de Idlib tiveram menos sucesso na tarefa de amenizar as dificuldades do cotidiano em um enclave onde acampamentos de barracas abrigam um vasto número de sírios desabrigados. O governo não conseguiu controlar a inflação, e provocou protestos ao cobrar impostos de produtores de azeitonas para aumentar a receita proveniente das exportações. Jornalistas e outros que criticam o governo ou o HTS ainda são detidos por fazê-lo.

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Esta sitiada província síria escapou do pior da covid. Então, o ceticismo em relação à vacina cruzou a fronteira.

O combatente rebelde Osama Shuman, 24 anos, de licença, deixou um desgastado edifício público da província em uma tarde recente depois de registrar seu casamento, tarefa que seria impossível alguns anos atrás.

De certas maneiras, foi um gesto vazio. O governo que registrou o matrimônio não é reconhecido por nenhum país do mundo. E esse serviço não solucionou o problema mais urgente de Shuman, ou seja, a pobreza: ele disse que vive amontoado com quinze parentes em um apartamento inacabado.

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Mas, diante do ministério de registro civil, ele parecia satisfeito com aquilo que o ritual simbolizava. “As coisas mudaram", disse ele.

Estudantes da Escola Bassam Shawi na província de Idlib, em 12 de outubro. O ministro da educação de Idlib diz que não houve nenhum esforço para injetar ideologia religiosa no currículo, mas as escolas estão se movendo para segregar as salas de aula por gênero Foto: Nicole Tung /The Washington Post.

Evolução dos militantes

Os ataques contra a Radio Fresh eram constantes após a fundação da emissora em 2013. A estação transmitia música, notícias e alertas para civis a respeito dos ataques aéreos do governo. Graças aos seus esforços, foi bombardeada pelo exército sírio e atacada por uma variedade de grupos militantes, incluindo a Frente al-Nusra Front, milícia radical que mais tarde se tornaria o HTS.

Klido, diretor executivo da emissora, estava entre os muitos em Idlib que acompanharam atentamente a evolução do grupo, desde os seus primórdios como movimento fundado em 2011 por jihadistas sírios determinados a derrubar o governo de Damasco. Inicialmente, ele enxergava o grupo como parte da revolução síria, ou ao menos trabalhando pelo mesmo objetivo que opositores mais liberais do governo como ele próprio, que desejavam a deposição de Assad.

“Eles já estavam aqui no começo. Eram conhecidos por combater. A república gostava deles", disse ele em entrevista recente concedida no porão da emissora.

Em questão de alguns anos, organizações de defesa dos direitos humanos estavam documentando atrocidades ligadas ao grupo, incluindo atentados suicidas que mataram civis, episódios de tortura e execuções sumárias. A Frente al-Nusra começou a “entrar em conflito com outras facções armadas, e todas começaram a se devorar mutuamente", disse Klido. Aos olhos dos grupos rebeldes, esses conflitos “se tornaram maiores do que a revolução".

Essa era violenta começou a retroceder alguns anos atrás, mas não antes de fazer outra vítima na Radio Fresh: o fundador da emissora, Raed Fares, morto em 2018 com um colega quando atiradores metralharam seu carro. Seus colegas responsabilizaram o HTS, que negou envolvimento no atentado.

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Ao menos por enquanto, a ameaça de diferentes facções rebeldes diminuiu. “Agora, temos uma só facção no controle", disse Klido, referindo-se ao HTS. E o grupo parece ansioso por obter a aprovação da população.

Em um indício desse esforço, oficiais da polícia moral, que antes agiam com impunidade, separando casais e assediando mulheres por causa de suas roupas, não são mais vistos nas ruas, disse ele. Mas, se os militantes relaxaram na vigilância da ideologia religiosa, eles redobraram a burocracia.

Os jornalistas da Radio Fresh enfrentam dificuldades para obter credenciais de imprensa, agora exigidas por um novo diretório de mídia. Para fazer reportagens, como visitas aos tribunais, “precisamos obter uma centena de aprovações", disse Klido. “Seja como for", acrescentou ele, “algum tipo de organização é preferível ao caos".

Mulheres se reúnem no dia 13 de outubro no terreno de um estádio na província de Idlib que uma vez abrigou milhares de desalojados de toda a Síria. A maioria já encontrou outro abrigo Foto: Nicole Tung/The Washington Post.

Experimento de governar

A peça central dos esforços de mudança de imagem do HTS é o Governo de Salvação, que conta com ministérios supervisionando a saúde, a educação e outros serviços ao público. O grupo militante decidiu formar este governo ao romper com a al-Qaeda, e conforme o HTS começou a afastar os membros mais radicais do movimento “para quem uma jihad transnacional parecia ser a única alternativa", disse Ajjoub.

“Havia a questão de como governar", disse ele. Conforme o HTS buscou reverter seu status de pária internacional, o grupo “quis mostrar que tem o controle da população local e busca resolver seus problemas", disse ele. Ataques aéreos israelenses na Síria tiveram como alvo instalações de armas químicas, dizem as autoridades.

Mas, desde o início, houve ceticismo quanto à possibilidade de o governo ser algo além de uma fachada para o HTS. Também há dúvidas em relação à sua capacidade de administrar uma província que desafiaria até os governantes mais capazes. Idlib ainda está mergulhada na guerra, e cerca de 2 milhões de pessoas (metade da população) estão desabrigadas, com dificuldade para encontrar alimento e abrigo.

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Mohammed Khalid, porta-voz do HTS, descreveu a relação entre o grupo e o governo como uma “parceria”, dizendo que esta foi concebida em 2016 para proporcionar uma vida decente para os habitantes de Idlib, mostrando também que havia uma “alternativa ao governo” em Damasco.

As autoridades se esforçam muito para retratar o governo como independente do HTS. Quando repórteres visitaram recentemente o ministério de registro civil e indagaram por que havia cartazes em muitas paredes recrutando combatentes para o HTS, os funcionários disseram que os cartazes eram “antigos". Meia hora depois, os cartazes tinham sido removidos.

A tarefa de governar se revelou um desafio. O ministério da educação supervisiona o ensino de aproximadamente meio milhão de estudantes em edifícios arruinados ou danificados e salas de aula lotadas. Milhares de professores trabalham essencialmente como voluntários, já que o governo não tem recursos para pagar a eles algo além de uma quantia simbólica, disse o ministro, Bassam Sahyouni. “Se deixarmos as crianças sem ensino, elas se tornarão ignorantes e cairão no extremismo", disse ele.

O currículo nas escolas inclui matérias padrão como ciência, matemática, inglês e história, e foi moldado com o apoio de parceiros internacionais como a UNICEF, disse ele. Não foi feito nenhum esforço para injetar ideologia religiosa no currículo, disse ele.

O controle cada vez mais firme de Assad

As escolas, no entanto, estão fazendo pelo menos uma concessão à maré ultraconservadora e optado pela separação de gênero das salas de aula a partir do primeiro ano do ensino fundamental, disse ele.

No ministério do interior, a tensa divisão da autoridade entre o governo e o HTS é visível. Nominalmente, o ministério é encarregado de algumas funções de segurança, como as regras de trânsito e a administração das investigações criminais. Mas outras questões de segurança (como as ligadas à “segurança nacional”) cabem ao HTS, de acordo com o ministro, Ahmed Latouf.

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Questões de “guerra, paz e economia" seguem firmemente sob o controle do HTS, disse Ajjoub, um dos muitos estudiosos para quem o autoritarismo está se tornando a característica que define o grupo. O HTS usou sua autoridade para reprimir grupos rebeldes rivais, incluindo facções extremistas, e para deter jihadistas estrangeiros operando em Idlib, disse ele. Mas o grupo também investiu contra aqueles que considera inimigos, incluindo críticos comuns.

Depois que um jornalista chamado Adham Dacharni escreveu uma publicação no Facebook meses atrás queixando-se que o governo se recusava a emitir-lhe uma credencial de imprensa, ele foi convocado para esclarecimentos no ministério da informação. Quando se recusou, foi intimado para interrogatório e, finalmente, convocado perante um tribunal militar.

Os interrogadores de Dacharni perguntaram por que ele fez comentários desrespeitosos a respeito do Governo de Salvação e o acusaram de estar em contato com outros que criticaram o HTS, de acordo com relato dele em entrevista pelo telefone. Durante o julgamento, foi mantido em uma prisão em uma instalação elétrica da cidade de Idlib, um dos muitos centros de detenção cuja existência os grupos de defesa dos direitos humanos dizem que o governo e o HTS se recusam a reconhecer oficialmente.

Ele foi solto depois de cumprir uma sentença de 15 dias de prisão. Dacharni, que já tinha criticado o HTS no Facebook anteriormente, disse que a sentença branda não mudou sua opinião a respeito do grupo.

“Mas, agora, sou mais cuidadoso", disse ele.

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