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Lobby de armas nos EUA patrocina aula de tiro em escolas em meio a debate sobre reação a ataques

Prática gera preocupação acerca de militarização de adolescentes em meio a recordes de violência armada

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Por Redação
Atualização:

Em meio a esforços para combater a epidemia de violência armada em escolas americanas e a um debate sobre como impedir ataques em massa entidades ligadas ao lobby das armas patrocinam cursos de tiros em colégios de ensino fundamental e médio em todo país. Desde 2015 a maior delas, a Associação Nacional do Rifle (NRA) dos Estados Unidos doou mais de US$ 5 milhões em dinheiro e equipamentos para subsidiar programas de tiro competitivo em escolas.

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Os programas, que utilizam fuzis de pressão, não armas de fogo, estão muito presentes em várias comunidades onde o tiro e a caça são atividades esportivas populares, e pais de alunos elogiam o treinamento por ensinar adolescentes a manusear armas de modo seguro.

Apesar do lobby, escolas de modo geral proíbem a presença de armas em seus campi, e já houve casos em que as equipes de tiro assustaram professores e estudantes preocupados com as chacinas em escolas e o aumento da violência com armas de fogo. Alguns distritos escolares eliminaram seus programas de tiro do JROTC ou tiveram discussões acirradas sobre como incorporá-los à vida dos colégios.

Para a NRA, que enfrenta problemas legais e financeiros crescentes, somados a uma perda de receita e de membros, a divulgação proporcionada pelos programas do JROTC oferece acesso a toda uma nova geração de potenciais membros, num espaço que goza de confiança ímpar: a escola pública.

Competição de tiro esportivo em Cape Coral, na Flórida: NRA tem patrocinado competições Foto: Zack Wittman/The New York Times

Tiro esportivo

Sob as luzes fluorescentes do ginásio de um colégio, dezenas de adolescentes se revezaram para disparar fuzis de pressão contra uma série de alvos. Era parte de uma competição de pontaria que atraiu estudantes de escolas de toda a costa do Golfo da Flórida.

O evento era mais bem equipado que muitos concursos colegiais, com luzes iluminando os alvos, miras telescópicas e uma cortina pesada para não deixar projéteis extrapolarem o espaço determinado. Tudo isso graças a um patrocínio crucial: a da ala beneficente da Associação Nacional de Rifles (NRA).

“Muitos dos equipamentos que vocês estão vendo foram doados pela NRA”, disse Bryan Williams, major aposentado do Exército que dá aulas no programa do JROTC (Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva juniores) no colégio do ensino médio Mariner, em Cape Coral.

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A menção à NRA não foi casual. Dados revelam que, para conseguir o patrocínio da entidade, instrutores militares que lideram equipes de pontaria do JROTC em colégios secundaristas públicos têm prometido promover a organização em competições e newsletters, fixar faixas da NRA nas escolas ou adicionar o logotipo da entidade aos uniformes dos estudantes.

Williams também ofereceu fornecer depoimentos de estudantes à NRA, “com fotos e relatos destacando os equipamentos e os cadetes felizes”.

Num momento em que muitos distritos vêm fazendo grandes esforços para impedir a entrada de armas em escolas, o JROTC é um dos poucos programas oferecidos nos colégios que promove o treinamento no uso de armas.

Adolescente com indumentária militar participam de competições com armas de pressão na Flórida  Foto: Zack Wittman/The New York Times

Foco na Flórida

Alguns dos distritos escolares que receberam contribuições da NRA, incluindo o distrito de Lee County, na Flórida, abrangem escolas que matriculam automaticamente os alunos de algumas séries nas aulas do JROTC ou os incentivam de outras maneiras a fazer as aulas, embora a participação nas equipes de tiro ao alvo geralmente seja voluntária.

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A NRA apoia os programas do JROTC, promovendo competições de tiro, divulgando equipes em sua revista de promoção e dando crachás especiais aos participantes em competições de tiro.

Um porta-voz da associuação disse em comunicado que a entidade se orgulha de financiar as equipes de tiro e que a promoção feita pelos instrutores do JROTC é escolha deles, não uma condição do patrocínio.

“A Fundação NRA tem o orgulho de patrocinar o ensino e treinamento no uso de armas de fogo para uma série de organizações que fazem jus a isso”, disse Andrew Arulanandam. “Os beneficiados às vezes promovem voluntariamente nossos esforços de conscientização sobre a importância do treinamento no uso de armas de fogo, segurança de armas e esportes ligados ao tiro. Temos orgulho dessas atividades e do impacto positivo que exercem sobre estudantes, escolas e comunidades em todo o país.”

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Em seus esforços para conseguir doações da NRA para financiar treinamento e competições de tiro em colégio, instrutores do JROTC têm dito que as doações vão ampliar o número de adolescentes treinados a usar armas de fogo em segurança e promover a Segunda Emenda da Constituição, de acordo com documentos de distritos escolares obtidos pelo New York Times em resposta a mais de cem solicitações. Alguns instrutores têm prometido incentivar os cadetes a ingressar na NRA e ofereceram estudantes como voluntários para participar em eventos de levantamento de fundos da associação.

“Com esta doação temos a oportunidade de envolver um grupo de estudantes em situação de risco em esportes de tiro”, escreveu um instrutor no Kentucky.

“A NRA é uma entidade amplamente conhecida e reconhecida em nossa comunidade. Aguardamos com prazer a possibilidade de fomentar essa reputação ainda mais com nossa demonstração de engajamento e excelência”, escreveu outro na Califórnia.

Um instrutor do JROTC no Texas escreveu que ter acesso a armas de fogo na escola “fomenta atitudes positivas em relação aos direitos dados pela Segunda Emenda nesses futuros eleitores e suas famílias”.

O retorno oferecido por instrutores do JROTC em contrapartida ao financiamento tem sido em muitos casos de natureza transacional. Um instrutor disse que as faixas da NRA em competições e em outros locais do JROTC vão constituir “espaço publicitário” que será maior ou menor, dependendo do valor da contribuição. Outros prometeram reconhecer a organização na internet, na rádio e em jornais locais.

A NRA já doou mais de US$ 150 mil desde 2015 em dinheiro e equipamentos para programas de tiro competitivo no Mariner High e outros colégios de Lee County, na costa oeste da Flórida. O dinheiro faz parte dos US$ 144 milhões que a entidade diz que desembolsou nas duas últimas décadas para promover os esportes de tiro para jovens no JROTC e outros programas.

Vários dos espectadores que acompanharam o evento do JROTC em Cape Coral usavam camisetas com logotipos a favor de armas.

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Recrutadores militares acompanharam o evento ao longo do dia inteiro e falaram com estudantes sobre os benefícios de entrar para as Forças Armadas. Essa participação de militares tem atraído a oposição de pais e alunos que fazem objeção quando escolas tornam a inscrição no JROTC obrigatória ou automática.

Michael Sloan, vice-comandante sênior de um posto local da entidade Veteranos de Guerras Internacionais, disse que sentia orgulho ao ver adolescentes aprendendo a manusear armas com segurança e eficácia

“Muitas pessoas falam muitas coisas sobre os jovens americanos, mas ver vocês todos aqui hoje exercitando seus direitos dados pela Segunda Emenda é uma coisa que nos dá orgulho enorme”, disse, discursando para os estudantes no início do segundo dia da competição. “Apreciamos seu patriotismo. Continuem firmes! A América é grandiosa, e vocês são parte do que a torna grandiosa.”

"Não sorria, não respire", diz mensagem em camiseta de participantes de competição de tiro esportivo em escola da Flórida  Foto: Zack Wittman/The New York Times

Críticas

Mas já houve instâncias em que a presença de armas em escolas dentro dos programas do JROTC causou problemas.

Um colégio em Durham, na Carolina do Norte, trancou suas portas depois de alguém ter denunciado a presença de uma pessoa com uma arma. Então a direção da escola identificou a pessoa como um cadete do JROTC fazendo exercícios.

Em Dover, no estado de Delaware, um programa do JROTC que queria criar uma equipe de pontaria topou com um problema: isso violaria o código rígido de controle de armas da cidade. O programa conseguiu que as regras da cidade fossem modificadas para permitir o treinamento dos cadetes. No ano seguinte a equipe recebeu uma doação de mais de US$ 10 mil da NRA.

Em 2019, estudantes em Nashua, no estado de New Hampshire, fizeram objeção quando um programa do JROTC pediu para incluir um programa de tiro no campus. Paula Durant, então aluna da última série, contou que ela e alguns de seus colegas de classe argumentaram que a escola deveria ser uma área livre de armas e que os fuzis de pressão usados no programa do JROTC pareciam de verdade. Ela disse que os estudantes estavam tensos desde o massacre do ano anterior em Parkland, na Flórida, quando um ex-aluno e cadete do JROTC usando a camiseta do programa JROTC matou 17 pessoas a tiros.

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Numa reunião pública, ela pediu à direção da escola que o treino de tiro fosse transferido para fora do campus. O distrito escolar acabou aderindo à proposta. Mais tarde ela teria sido alvo de fortes reações negativas de pessoas que a acusaram de covardia. Algumas pessoas teriam usado um tom tão ameaçador que policiais da cidade foram ao campus para garantir a ela que iam apoiá-la.

Após o massacre de 2018 numa escola de Parkland, o conselho escolar de Broward County, que abrange a cidade, decidiu que não aceitaria mais dinheiro da NRA. Alguns professores também já manifestaram dúvidas em relação às competições de tiro e treinamento de armas.

Deborah Teal é professora no colégio Santa Ana High, em Orange County, na Califórnia. Ela disse que já viu o programa ajudar alunos não envolvidos em outras atividades escolares, mas que acha assustadora a ênfase sobre armas num momento em que estudantes já enfrentam tanta violência armada.

“O que me preocupa é a militarização de adolescentes, especialmente adolescentes vulneráveis.” Teal disse ainda que alguns alunos da escola onde ela lecionou lançaram uma petição pedindo que o programa de tiro fosse cancelado. A petição não teve sucesso. / NYT

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